domingo, 28 de novembro de 2010

A crise no Rio e o pastiche midiático

Autor: Luiz Eduardo Soares

26 novembro 2010

Em: Imprensa, Opinião

Sempre mantive com jornalistas uma relação de respeito e cooperação. Em alguns casos, o contato profissional evoluiu para amizade. Quando as divergências são muitas e profundas, procuro compreender e buscar bases de um consenso mínimo, para que o diálogo não se inviabilize. Faço-o por ética – supondo que ninguém seja dono da verdade, muito menos eu -, na esperança de que o mesmo procedimento seja adotado pelo interlocutor. Além disso, me esforço por atender aos que me procuram, porque sei que atuam sob pressão, exaustivamente, premidos pelo tempo e por pautas urgentes. A pressa se intensifica nas crises, por motivos óbvios. Costumo dizer que só nós, da segurança pública (em meu caso, quando ocupava posições na área da gestão pública da segurança), os médicos e o pessoal da Defesa Civil, trabalhamos tanto –ou sob tanta pressão – quanto os jornalistas.

Digo isso para explicar por que, na crise atual, tenho recusado convites para falar e colaborar com a mídia:

(1) Recebi muitos telefonemas, recados e mensagens. As chamadas são contínuas, a tal ponto que não me restou alternativa a desligar o celular. Ao todo, nesses dias, foram mais de cem pedidos de entrevistas ou declarações. Nem que eu contasse com uma equipe de secretários, teria como responder a todos e muito menos como atendê-los. Por isso, aproveito a oportunidade para desculpar-me. Creiam, não se trata de descortesia ou desapreço pelos repórteres, produtores ou entrevistadores que me procuraram.

(2) Além disso, não tenho informações de bastidor que mereçam divulgação. Por outro lado, não faria sentido jogar pelo ralo a credibilidade que construí ao longo da vida. E isso poderia acontecer se eu aceitasse aparecer na TV, no rádio ou nos jornais, glosando os discursos oficiais que estão sendo difundidos, declamando platitudes, reproduzindo o senso comum pleno de preconceitos, ou divagando em torno de especulações. A situação é muito grave e não admite leviandades. Portanto, só faria sentido falar se fosse para contribuir de modo eficaz para o entendimento mais amplo e profundo da realidade que vivemos. Como fazê-lo em alguns parcos minutos, entrecortados por intervenções de locutores e debatedores? Como fazê-lo no contexto em que todo pensamento analítico é editado, truncado, espremido – em uma palavra, banido -, para que reinem, incontrastáveis, a exaltação passional das emergências, as imagens espetaculares, os dramas individuais e a retórica paradoxalmente triunfalista do discurso oficial?

(3) Por fim, não posso mais compactuar com o ciclo sempre repetido na mídia: atenção à segurança nas crises agudas e nenhum investimento reflexivo e informativo realmente denso e consistente, na entressafra, isto é, nos intervalos entre as crises. Na crise, as perguntas recorrentes são: (a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a explosão de violência? (b) O que a polícia deveria fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas? (c) Por que o governo não chama o Exército? (d) A imagem internacional do Rio foi maculada? (e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?

Ao longo dos últimos 25 anos, pelo menos, me tornei “as aspas” que ajudaram a legitimar inúmeras reportagens. No tópico, “especialistas”, lá estava eu, tentando, com alguns colegas, furar o bloqueio à afirmação de uma perspectiva um pouquinho menos trivial e imediatista. Muitas dessas reportagens, por sua excelente qualidade, prescindiriam de minhas aspas – nesses casos, reduzi-me a recurso ocioso, mera formalidade das regras jornalísticas. Outras, nem com todas as aspas do mundo se sustentariam. Pois bem, acho que já fui ou proporcionei aspas o suficiente. Esse código jornalístico, com as exceções de praxe, não funciona, quando o tema tratado é complexo, pouco conhecido e, por sua natureza, rebelde ao modelo de explicação corrente. Modelo que não nasceu na mídia, mas que orienta as visões aí predominantes. Particularmente, não gostaria de continuar a ser cúmplice involuntário de sua contínua reprodução.

Eis por que as perguntas mencionadas são expressivas do pobre modelo explicativo corrente e por que devem ser consideradas obstáculos ao conhecimento e réplicas de hábitos mentais refratários às mudanças inadiáveis. Respondo sem a elegância que a presença de um entrevistador exigiria. Serei, por assim dizer, curto e grosso, aproveitando-me do expediente discursivo aqui adotado, em que sou eu mesmo o formulador das questões a desconstruir. Eis as respostas, na sequência das perguntas, que repito para facilitar a leitura:

O que fazer, já, imediatamente, para sustar a violência e resolver o desafio da insegurança?

Nada que se possa fazer já, imediatamente, resolverá a insegurança. Quando se está na crise, usam-se os instrumentos disponíveis e os procedimentos conhecidos para conter os sintomas e salvar o paciente. Se desejamos, de fato, resolver algum problema grave, não é possível continuar a tratar o paciente apenas quando ele já está na UTI, tomado por uma enfermidade letal, apresentando um quadro agudo. Nessa hora, parte-se para medidas extremas, de desespero, mobilizando-se o canivete e o açougueiro, sem anestesia e assepsia. Nessa hora, o cardiologista abre o tórax do moribundo na maca, no corredor. Não há como construir um novo hospital, decente, eficiente, nem para formar especialistas, nem para prevenir epidemias, nem para adotar procedimentos que evitem o agravamento da patologia. Por isso, o primeiro passo para evitar que a situação se repita é trocar a pergunta. O foco capaz de ajudar a mudar a realidade é aquele apontado por outra pergunta: o que fazer para aperfeiçoar a segurança pública, no Rio e no Brasil, evitando a violência de todos os dias, assim como sua intensificação, expressa nas sucessivas crises?

Se o entrevistador imaginário interpelar o respondente, afirmando que a sociedade exige uma resposta imediata, precisa de uma ação emergencial e não aceita nenhuma abordagem que não produza efeitos práticos imediatos, a melhor resposta seria: caro amigo, sua atitude representa, exatamente, a postura que tem impedido avanços consistentes na segurança pública. Se a sociedade, a mídia e os governos continuarem se recusando a pensar e abordar o problema em profundidade e extensão, como um fenômeno multidimensional a requerer enfrentamento sistêmico, ou seja, se prosseguirmos nos recusando, enquanto Nação, a tratar do problema na perspectiva do médio e do longo prazos, nos condenaremos às crises, cada vez mais dramáticas, para as quais não há soluções mágicas.

A melhor resposta à emergência é começar a se movimentar na direção da reconstrução das condições geradoras da situação emergencial. Quanto ao imediato, não há espaço para nada senão o disponível, acessível, conhecido, que se aplica com maior ou menor destreza, reduzindo-se danos e prolongando-se a vida em risco. A pergunta é obtusa e obscurantista, cúmplice da ignorância e da apatia.

O que as polícias fluminenses deveriam fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas?

Em primeiro lugar, deveriam parar de traficar e de associar-se aos traficantes, nos “arregos” celebrados por suas bandas podres, à luz do dia, diante de todos.
Deveriam parar de negociar armas com traficantes, o que as bandas podres fazem, sistematicamente. Deveriam também parar de reproduzir o pior do tráfico, dominando, sob a forma de máfias ou milícias, territórios e populações pela força das armas, visando rendimentos criminosos obtidos por meios cruéis.

Ou seja, a polaridade referida na pergunta (polícias versus tráfico) esconde o verdadeiro problema: não existe a polaridade. Construí-la – isto é, separar bandido e polícia; distinguir crime e polícia – teria de ser a meta mais importante e urgente de qualquer política de segurança digna desse nome. Não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. E só por isso que ainda existe tráfico armado, assim como as milícias.

Não digo isso para ofender os policiais ou as instituições. Não generalizo. Pelo contrário, sei que há dezenas de milhares de policiais honrados e honestos, que arriscam, estóica e heroicamente, suas vidas por salários indignos. Considero-os as primeiras vítimas da degradação institucional em curso, porque os envergonha, os humilha, os ameaça e acua o convívio inevitável com milhares de colegas corrompidos, envolvidos na criminalidade, sócios ou mesmo empreendedores do crime.

Não nos iludamos: o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionalidade econômica e sua incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte histórico. Incapaz, inclusive, de competir com as milícias, cuja competência está na disposição de não se prender, exclusivamente, a um único nicho de mercado, comercializando apenas drogas – mas as incluindo em sua carteira de negócios, quando conveniente. O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, antieconômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e disciplinados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da facção. É excessivamente custoso impor-se sobre um território e uma população, sobretudo na medida em que os jovens mais vulneráveis ao recrutamento comecem a vislumbrar e encontrar alternativas. Não só o velho modelo é caro, como pode ser substituído com vantagens por outro muito mais rentável e menos arriscado, adotado nos países democráticos mais avançados: a venda por delivery ou em dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pacífica. Em outras palavras, é melhor, mais fácil e lucrativo praticar o negócio das drogas ilícitas como se fosse contrabando ou pirataria do que fazer a guerra. Convenhamos, também é muito menos danoso para a sociedade, por óbvio.

O Exército deveria participar?

Fazendo o trabalho policial, não, pois não existe para isso, não é treinado para isso, nem está equipado para isso. Mas deve, sim, participar. A começar cumprindo sua função de controlar os fluxos das armas no país. Isso resolveria o maior dos problemas: as armas ilegais passando, tranquilamente, de mão em mão, com as benções, a mediação e o estímulo da banda podre das polícias.

E não só o Exército. Também a Marinha, formando uma Guarda Costeira com foco no controle de armas transportadas como cargas clandestinas ou despejadas na baía e nos portos. Assim como a Aeronáutica, identificando e destruindo pistas de pouso clandestinas, controlando o espaço aéreo e apoiando a PF na fiscalização das cargas nos aeroportos.

A imagem internacional do Rio foi maculada? Claro. Mais uma vez. Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas? Sem dúvida. Somos ótimos em eventos. Nesses momentos, aparece dinheiro, surge o “espírito cooperativo”, ações racionais e planejadas impõem-se. Nosso calcanhar de Aquiles é a rotina. Copa e Olimpíadas serão um sucesso. O problema é o dia a dia.

Palavras Finais

Traficantes se rebelam e a cidade vai à lona. Encena-se um drama sangrento, mas ultrapassado. O canto de cisne do tráfico era esperado. Haverá outros momentos análogos, no futuro, mas a tendência declinante é inarredável. E não porque existem as UPPs, mas porque correspondem a um modelo insustentável, economicamente, assim como social e politicamente. As UPPs, vale dizer mais uma vez, são um ótimo programa, que reedita com mais apoio político e fôlego administrativo o programa “Mutirões pela Paz”, que implantei com uma equipe em 1999, e que acabou soterrado pela política com “p” minúsculo, quando fui exonerado, em 2000, ainda que tenha sido ressuscitado, graças à liderança e à competência raras do Ten. Cel. Carballo Blanco, com o título GPAE, como reação à derrocada que se seguiu à minha saída do governo. A despeito de suas virtudes, valorizadas pela presença de Ricardo Henriques na secretaria estadual de assistência social – um dos melhores gestores do país -, elas não terão futuro se as polícias não forem profundamente transformadas. Afinal, para tornarem-se política pública terão de incluir duas qualidades indispensáveis: escala e sustentatibilidade, ou seja, terão de ser assumidas, na esfera da segurança, pela PM. Contudo, entregar as UPPs à condução da PM seria condená-las à liquidação, dada a degradação institucional já referida.

O tráfico que ora perde poder e capacidade de reprodução só se impôs, no Rio, no modelo territorializado e sedentário em que se estabeleceu, porque sempre contou com a sociedade da polícia, vale reiterar. Quando o tráfico de drogas no modelo territorializado atinge seu ponto histórico de inflexão e começa, gradualmente, a bater  em retirada, seus sócios – as bandas podres das polícias – prosseguem fortes, firmes, empreendedores, politicamente ambiciosos, economicamente vorazes, prontos a fixar as bandeiras milicianas de sua hegemonia.

Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo: como, quem, em que termos e por que meios se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, máfias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrupção? Como se refundarão as instituições policiais para que os bons profissionais sejam, afinal, valorizados e qualificados? Como serão transformadas as polícias, para que deixem de ser reativas, ingovernáveis, ineficientes na prevenção e na investigação?

As polícias são instituições absolutamente fundamentais para o Estado democrático de direito. Cumpre-lhes garantir, na prática, os direitos e as liberdades estipulados na Constituição. Sobretudo, cumpre-lhes proteger a vida e a estabilidade das expectativas positivas relativamente à sociabilidade cooperativa e à vigência da legalidade e da justiça. A despeito de sua importância, essas instituições não foram alcançadas em profundidade pelo processo de transição democrática, nem se modernizaram, adaptando-se às exigências da complexa sociedade brasileira contemporânea. O modelo policial foi herdado da ditadura. Ele servia à defesa do Estado autoritário e era funcional ao contexto marcado pelo arbítrio. Não serve à defesa da cidadania. A estrutura organizacional de ambas as polícias impede a gestão racional e a integração, tornando o controle impraticável e a avaliação, seguida por um monitoramento corretivo, inviável. Ineptas para identificar erros, as polícias condenam-se a repeti-los. Elas são rígidas onde teriam de ser plásticas, flexíveis e descentralizadas; e são frouxas e anárquicas, onde deveriam ser rigorosas. Cada uma delas, a PM e a Polícia Civil, são duas instituições: oficiais e não-oficiais; delegados e não-delegados.

E nesse quadro, a PEC 300 é varrida do mapa no Congresso pelos governadores, que pagam aos policiais salários insuficientes, empurrando-os ao segundo emprego na segurança privada informal e ilegal.

Uma das fontes da degradação institucional das polícias é o que denomino “gato orçamentário”, esse casamento perverso entre o Estado e a ilegalidade: para evitar o colapso do orçamento público na área de segurança, as autoridades toleram o bico dos policiais em segurança privada. Ao fazê-lo, deixam de fiscalizar dinâmicas benignas (em termos, pois sempre há graves problemas daí decorrentes), nas quais policiais honestos apenas buscam sobreviver dignamente, apesar da ilegalidade de seu segundo emprego, mas também dinâmicas malignas: aquelas em que policiais corruptos provocam a insegurança para vender segurança; unem-se como pistoleiros a soldo em grupos de extermínio; e, no limite, organizam-se como máfias ou milícias, dominando pelo terror populações e territórios. Ou se resolve esse gargalo (pagando o suficiente e fiscalizando a segurança privada /banindo a informal e ilegal; ou legalizando e disciplinando, e fiscalizando o bico), ou não faz sentido buscar aprimorar as polícias.

O Jornal Nacional, nesta quinta, 25 de novembro, definiu o caos no Rio de Janeiro, salpicado de cenas de guerra e morte, pânico e desespero, como um dia histórico de vitória: o dia em que as polícias ocuparam a Vila Cruzeiro. Ou eu sofri um súbito apagão mental e me tornei um idiota contumaz e incorrigível ou os editores do JN sentiram-se autorizados a tratar milhões de telespectadores como contumazes e incorrigíveis idiotas. Ou se começa a falar sério e levar a sério a tragédia da insegurança pública no Brasil, ou será pelo menos mais digno furtar-se a fazer coro à farsa.

*Luiz Eduardo Soares é Mestre em Antropologia, doutor em ciência política com pós-doutorado em filosofia política. Foi secretário nacional de segurança pública (2003) e coordenador de segurança, justiça e cidadania do Estado do RJ (1999/março 2000). Colaborou com o governo municipal de Porto Alegre, de março a dezembro de 2001, como consultor responsável pela formulação de uma política municipal de segurança. De 2007 a 2009, foi secretário municipal de valorização da vida e prevenção da violência de Nova Iguaçu (RJ). Em 2000, foi pesquisador visitante do Vera Institute of Justice de Nova York e da Columbia University. Co-autor de “Elite da Tropa” e “Elite da Tropa 2″, autor de “Meu Casaco de General” e “Espírito Santo”.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Centenário de morte de Leon Tolstoi, mestre de Gandhi

Leonardo Boff

Ocupando lugar central da sala de estar de  minha casa há impressionante quadro de um pintor polonês mostrando Tolstoi (1828-1910) sendo abraçado pelo Cristo coroado de espinhos. Ele está vestido como um camponês russo e parece extenuado como a simbolizar a humanidade inteira chegando finalmente ao abraço infinito da paz depois de milhões de anos ascendendo penosamente o caminho da evolução. Foi um presente que recebi do então Presidente da Assembléia da ONU Miguel d’Escoto Brockmann, grande devoto do pai do pacifismo moderno. No dia 20 de novembro  celebrou-se o centenário de sua morte em 1910. Ele merece ser recordado não só como um dos maiores escritores da humanidade com seus romances Guerra e Paz (1868) e Anna Karenina (1875) entre outros tantos, perfazendo 90 volumes, mas principalmente como um dos espíritos mais comprometidos com os pobres e com a paz, considerado o pai do pacifismo moderno.

Para nós teólogos, conta especialmente o livro O Reino de Deus está em vós escrito depois de terrível crise espiritual quando tinha 50 anos (1978). Frequentou filósofos, teólogos e sábios e ninguém o satisfez. Foi então que mergulhou no mundo dos pobres. Foi ai que redescobriu a fé viva “aquela que lhes dava possibilidade de viver”. Tolstoi considerava esta obra a mais importante de tudo o que escreveu. Seus famosos romances tinha-os, como confessa no Diário de 28/20/1895, como “conversa fiada de feirantes para atrair fregueses com o objetivo de lhes vender depois outra coisa bem diferente”. Levou três anos para terminá-la (1890-1893). Saiu no Brasil pela Editora Rosa dos Tempos (hoje Record) em 1994, com bela introdução de Frei Clodovis Boff, mas infelizmente esgotada.

O Reino de Deus está em vós, logo traduzido em várias línguas, teve enorme repercussão, gerando aplausos e acirradas rejeições. Mas a maior influência foi sobre Gandhi. Mergulhado também em profunda crise espiritual, acreditando ainda na violência como solução para os problemas sociais, leu o livro em 1894. Causou-lhe uma abissal comoção: ”a leitura do livro me curou e fez de mim um firme seguidor da ahimsa (não violência)”. Distribuía o livro entre amigos e o levou para a prisão em 1908 para meditá-lo. O apóstolo da “não-violência ativa” teve como mestre a Leon Tolstoi. Este foi excomungado pela Igreja Ortodoxa e o livro vetado pelo regime czarista.

Qual a tese central do livro? É a palavra de Cristo: ”Não resistais ao mal” (Mt 5,39). O sentido é: “Não resistais ao mal com o mal”. Ou não respondais a violência com violência. Não se trata de cruzar os braços, mas de responder à violência com a não-violência ativa: com a bondade,a mansidão e o amor. Em outra forma:”não revidar, não retaliar, não contra-atacar, não se vingar”. Estas atitudes verdadeiras possuem um força intrínseca invencível como ensina Gandhi. Para o profeta russo tal preceito não se restringe ao cristianismo. Ele traduz  a lógica secreta e profunda do espírito humano que é o amor. Toca no sagrado que está dentro de cada um. Por isso o título do livro O Reino de Deus está em vós.

Gandhi traduziu a nao-violência tolstoiana como não-cooperação, desobediência civil e repúdio ativo a toda servilidade. Tanto ele como Tolstoi sabiam que o poder se alimenta da aceitação, da obediência cega e da submissão. Porque tanto o Estado quanto a Igreja exigem estas atitudes servis, desqualifica-as de forma contundente. São instituições que tolhem a liberdade, atributo inalienável e definitório do ser humano. No frontispício do livro lemos a frase de São Paulo:”não vos torneis servos dos homens”(1Cor 7,23).

Para Tolstoi o cristianismo é menos uma doutrina a ser aceita do que  uma prática a ser vivida. Ele está à frente e não atrás. Para trás parece que faliu. Mas à frente é uma força que não foi ainda totalmente experimentada. E é urgente praticá-la Profeticamente Tolstoi percebia a irrupção de guerras violentas, como, de fato, ocorreram. A casa está pegando fogo e não há tempo para se perguntar se é preciso sair ou não.

Tolstoi tem uma mensagem para o momento atual pois os grandes continuam acreditando na violência bélica para resolver problemas políticos no Iraque e no Afeganistão. Mas outros tempos virão. Quando o pintinho já não pode mais ficar no ovo, ele mesmo rompe a casca com o bico e então nasce. Assim deverá nascer uma nova era de não-violência e de paz.
 

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

3o. Simpósio da COLUFRAS

A MELHORIA CONTÍNUA DO DESEMPENHO DOS SISTEMAS E SERVIÇOS DE SAÚDE:
UMA NECESSIDADE INCONTORNÁVEL

3o. Simpósio da COLUFRAS,

Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil,

29 de novembro a 01 de dezembro de 2010

Contexto
A Conferência luso-francófona da saúde (COLUFRAS), ONG internacional cuja sede encontra-se em Montréal, nasceu de um acordo de colaboração na área da saúde entre o Brasil e o Québec para estender-se, mais tarde , ao conjunto dos países lusófonos e francófonos. Visa à promoção equânime de acesso aos serviços de saúde numa perspectiva cidadã, isto é, de forma atenta aos direitos de cidadania, às preocupações dos governantes, bem como à construção de um amanhã melhor para a saúde das populações.
Na condição de rede internacional de comunicação, a COLUFRAS tem como tarefa primordial a promoção de intercâmbios e colaboração entre os países francófonos e lusófonos na área da saúde, assim como a promoção e estímulo ao uso do francês e do português como instrumentos de comunicação nessa área.
O primeiro simpósio internacional da COLUFRAS – « Saúde e Cidadania », aconteceu em Montréal em junho de 2005. Seu objetivo era o de promover o diálogo entre experiências do Brasil e do Québec/Canadá acerca de cinco grandes preocupações compartilhadas por todos os Estados com respeito a seus sistemas de saúde :
1- A participação cidadã e a governança do sistema
2- A regulação e o financiamento
3- A descentralização e a integração dos cuidados
4- A avaliação e o desempenho
5- A formação de recursos humanos

Na sequência, chegar a conclusões sobre as formas mais promissoras de uma colaboração internacional respeitosa e eficiente.
O 2o. simpósio internacional deu-se em Salvador (Brasil), em julho de 2007 e teve como tema "Equidade, ética e direito à saúde: os desafios da colaboração internacional".
O próximo simpósio da COLUFRAS "A melhoria contínua do desempenho dos sistemas e serviços saúde: uma necessidade incontornável" terá lugar no final de novembro de 2010, em Campo Grande, Brasil. Ele pretende reunir responsáveis governamentais, profissionais da saúde de países lusófonos e francófonos das Américas, da Europa e da África, assim como pesquisadores, membros do setor acadêmico, gestores da saúde dos setores público, privado e filantrópico, ONGs, associações profissionais e organismos internacionais de países lusófonos e francófonos das Américas, da Europa e da África, no sentido de encontrar conjuntos de respostas operacionais para colocar os sistemas de saúde dos países participantes numa trajetória de melhoria contínua de desempenho.
A pertinência do tema do simpósio decorre da tensão exacerbada pela crise financeira e econômica de 2008, presente em todos os países entre, de um lado, a forte demanda da população para que o Estado garanta atendimento a todas as pessoas que necessitem de cuidados a serviços de saúde, com qualidade e equidade e, de outro lado, a necessidade de controlar as despesas públicas de saúde, a fim de estancar os déficits do Estado.
De um lado, as expectativas da população com respeito ao sistema de saúde, em grande parte criadas pelos progressos da medicina (novos conhecimentos e desenvolvimento de inovações tecnológicas), são amplificadas pelo envelhecimento populacional e a degradação do meio-ambiente. Por sua vez, os governos, desejosos de conservar uma capacidade de agir de modo democrático, devem reduzir suas despesas em relação aos mercados financeiros internacionais.

Os governos são assim colocados frente a um inquietante dilema : sabem que sua legitimidade repousa sobre sua capacidade em desenvolver o sistema os e serviços de saúde, respondendo assim às expectativas da população. Todavia, o risco que correm, ao fazê-lo, é o de perder sua capacidade de agir de maneira democrática, tornando-se cada vez mais dependentes dos mercados financeiros internacionais. Colocados numa situação como essa, a única opção consiste em tentar melhorar o desempenho de seus sistemas e serviços de saúde, ou em outras palavras, fazer mais e melhor com os mesmos recursos existentes. Para atingir tal objetivo, é preciso conceber e implementar reformas que, todas, visam à melhoria da integração, a pensar de maneira diferente a governança, oferecendo novas ferramentas de avaliação do desempenho do sistema e dos serviços de saúde e seus organismos responsáveis pela tomada de decisões.
A melhoria contínua do desempenho torna-se, assim, uma condição essencial à sobrevivência do sistema público de saúde. Porém, para melhorar sua performance é preciso, antes de mais nada, mensurá-la, o que é em si mesma uma difícil tarefa. De um lado, os sistemas, organismos e serviços de saúde são sistemas complexos, formados por inúmeras organizações, componentes e programas de serviços que requerem a participação de muitos atores com interesses divergentes. Sua melhoria passa por transformações às vezes contraditórias. Por outro lado, o conceito de desempenho (ou performance) está longe da unanimidade. Os modelos utilizados para avaliá-la parecem muitas vezes fragmentados, refletindo as preocupações e os interesses divergentes das diferentes categorias de atores implicados.
Sobressai, aqui, a questão fundamental do simpósio : em que consiste o desempenho de uma organização, como avaliar e como utilizar os resultados da avaliação para levar os sistemas, e organismos e serviços de saúde a melhorar continuamente seu desempenho?


Descrição geral do colóquio :
O colóquio pretende promover o diálogo entre as práticas de avaliação do desempenho dos países lusófonos e francófonos, de modo a evidenciar pontos comuns, as diferenças, assim como as pistas de cooperação a priorizar.
Sua duração será de três dias, divididos em cinco blocos:

Bloco 1 : Por que é preciso avaliar o desempenho do sistema de saúde e dos serviços que o integram?
Este bloco de conferências visa mostrar como o debate sobre a necessidade de se avaliar o desempenho se manifesta no Brasil, no Quebec/Canadá e em outros países lusófonos e francófonos.
Bloco 2: O que abrange o conceito de desempenho ("performance")?
A ideia central deste bloco é a de mostrar que o conceito de desempenho é um conceito integrador, que deveria permitir, de um lado, situar os conceitos de eficácia, eficiência, qualidade, produtividade, etc., uns com relação aos outros e com respeito àquele do desempenho. Por outro lado, permitirá mostrar a contribuição de diferentes iniciativas de avaliação, como relacionadas à qualidade, ao controle de gestão, à acreditação, à imputabilidade, à melhoria contínua, todas elas com respeito ao aperfeiçoamento do desempenho. Este bloco permitirá, ainda, refletir sobre a necessidade de um conceito renovado, global e integrador do desempenho, sobre o desenvolvimento de novas ferramentas e sobre uma nova cultura voltada ao melhoramento contínuo do desempenho.

Bloco 3: As diversas abordagens usadas para se avaliar o desempenho em diferentes países
Este bloco de conferências visa a dar a conhecer aos participantes as diferentes abordagens da avaliação de desempenho em diferentes países. Serão apresentadas experiências do Brasil, do Québec, do Banco Mundial, de vários países europeus (França, Portugal, Suiça) e da África francófona e lusófona.
As conferências deste bloco permitirão ver, partir de experiências concretas, como as diferentes dimensões do desempenho são levados em conta e quais são as implicações associadas à sua mensuração global e integrada.

Bloco 4: Que pistas seguir para a melhoria do desempenho dos sistemas e dos serviços de saúde?
Este bloco permitirá ver como a avaliação do desempenho foi utilizada pelos responsáveis por tomada de decisões e que pistas de cooperação são as mais promissoras.


Programação do Encontro da COLUFRAS 29-11-2010 a 01-12-2010

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

UM PROJETO DEMOCRÁTICO E POPULAR PARA O BRASIL


Fausto Jaime


De tudo, três coisas:
A certeza de estarmos sempre começando;
A certeza de que é preciso continuar;
E a certeza de que podemos ser interrompidos
antes de terminarmos.
Fazer da interrupção um caminho novo,
da queda um passo de dança,
do medo uma procura
e da procura um encontro.

Fernando Sabino


Participei ativamente das lutas democráticas, contra o regime militar, pela anistia ampla, geral e irrestrita e da Campanha das Diretas Já. Estava, inclusive, no palanque do primeiro comício das Diretas Já, em Goiânia, na Praça Cívica. Este comício ocorreu em palanque armado em frente ao Palácio das Esmeraldas, o palácio do governo estadual de Goiás. Nesta época, era governador o atual Prefeito de Goiânia, Íris Rezende Machado, do PMDB.
No palanque, estavam: Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Luiz Inácio Lula da Silva, entre outras personalidades do mundo político daquela época. Confesso, no entanto, que me chamaram mais a atenção a Carla Camurati, a Cristiane Torloni e a Fafá de Belém. Essa última inaugurou ali, pela primeira vez de forma pública, aquela bonita versão do Hino Nacional que conhecemos. Tive a oportunidade histórica de estar naquele palanque porque na época era Presidente do Diretório Regional do PT de Goiás.  Foi um comício memorável que marcou o início da grande campanha cívica que acelerou o fim do regime militar no Brasil.
 Ali cheguei após muita luta pela fundação do Partido dos Trabalhadores. Em 1978, foi deflagrada pelo regime militar, dentro da estratégia de “distensão lenta gradual e segura”, a proposta de reformulação partidária. A perspectiva das forças dominantes no país daquela época era superar o bipartidarismo vigente permitindo a criação de mais alguns partidos, dentro do leque ideológico de centro e direita.   Estabeleceram-se cláusulas de barreira que segundo os cálculos dos estrategistas do regime, capitaneados pelo General Golberi do Couto e Silva, chefe do Gabinete Civil do então Presidente Geisel, impediriam a legalização de partidos de esquerda.
Ainda em 1978, participei de uma articulação pela fundação de um Partido Popular e de Massas, um partido de orientação socialista, que na ocasião, unificou, com este propósito, intelectuais, sindicalistas e militantes de esquerda em busca de uma alternativa legal de participação política. Em função desta articulação, tive a oportunidade de participar, em um hotel de São Paulo, da maior reunião de militantes de esquerda de que tive notícia no período do regime militar. Reuniram-se ali mais de duzentas pessoas.
Para esta reunião, foram adotadas medidas especiais de segurança.  Os participantes em geral não sabiam previamente o local da reunião. Somente a comissão organizadora sabia e marcava “pontos” com os demais participantes na rua. Qual não foi a minha surpresa ao encontrar ali figuras como Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Almino Afonso, Francisco Weffort, Francisco de Oliveira, alguns deles participavam do Cebrap, famoso na época por dar guarida a intelectuais democratas e de esquerda.
Esta articulação se rachou em duas facções: uma delas liderada por Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Almino Afonso resolveu participar da fundação do PMDB. Eles acharam, na época, que um partido com aquelas características poderia não se viabilizar eleitoralmente, ou até mesmo poderia não se legalizar. A outra facção veio a desaguar, em 1979, no Movimento Pró-PT, que tinha sido lançado pelos sindicalistas de São Bernardo, liderados pelo Lula. 
Contribuí ativamente para a fundação do Partido dos Trabalhadores – PT. Na época, eu era prefeito em uma pequena cidade do interior de Goiás, para onde eu me mudara, logo após a minha formatura na Universidade de Brasília. Fui eleito pelo antigo MDB e fui então o único prefeito do país a aderir à proposta de construir o Partido dos Trabalhadores. Fui, inclusive, no final de 1979, vítima de um atentado em que fui baleado a mando de adversários, incomodados com a minha atuação.
A legalização de um partido de massas com as características do PT foi uma luta árdua. Para viabilizar o partido, confluíram três forças principais: os sindicalistas liderados pelos metalúrgicos de São Bernardo; a esquerda católica com amplo enraizamento nas Comunidades Eclesiais de Base e no movimento dos sem-terra; e os remanescentes de várias organizações da esquerda revolucionária. Fundamos o Partido, em Congresso de que tive a honra de participar como um dos duzentos e poucos delegados que se reuniram no Sedes Sapientiae em São Paulo, em fevereiro de 1980. Ali aprovamos, depois de intensas discussões, o Manifesto e o Programa do Partido, que deu entrada no Tribunal Superior Eleitoral. O requerimento, que solicitou a legalização do partido, continha, portanto, a minha assinatura.
Atualmente, o Partido dos Trabalhadores - PT atingiu um nível de maturidade política, capacidade de articulação, de intervenção social, de inserção e ação política e institucional respeitável no contexto nacional. Ganhou prefeituras, governos estaduais, a presidência da república e ocupou um amplo espaço no parlamento. Neste percurso, alguns dos seus membros cometeram erros, desvios de natureza ética, traindo, desta forma os princípios fundantes do partido. No entanto, a maioria dos membros do partido é movida pelo ideal de construção de um mundo melhor, de uma sociedade democrática, fraterna e igualitária.
A maioria do partido está empenhada em contribuir na orientação de práticas e posturas éticas e inovadoras. Muitos petistas estão empenhados em oferecer formulações conceituais e teóricas que contribuam para a qualificação da ação partidária e com a consolidação do partido como formulador de políticas públicas capazes de incrementar de forma efetiva o ingresso à cidadania, através de políticas inclusivas de emprego e renda, de educação e saúde para todos, de segurança e do efetivo exercício da democracia.


NÓS TEMOS UM SONHO, UM MUNDO LIVRE DE POBREZA.


Na entrada do edifício do Banco Mundial em Washington, existe a seguinte inscrição: We have a dream, a world free of poverty (Nós temos um sonho, um mundo livre de pobreza). No entanto, as políticas e práticas do Banco Mundial têm contribuído para agravar a pobreza em todo o mundo. Nesse momento, procuramos dar respostas ao sonho de "um outro mundo possível". Como expressar simbolicamente os valores que se quer afirmar nesse momento histórico? Como viabilizar as grandes orientações que entram em contradição com as lógicas fundamentais do capitalismo? Quais as principais orientações a serem adotadas em relação à natureza e ao ser humano?
A natureza não é um mero objeto de exploração, mas somos parte dela e devemos expressar um sentido de admiração, respeito e contemplação. A nossa relação com os outros seres humanos deve expressar um sentido de cuidado, de fraternidade, de ternura, de amor, de paz, de recusa à agressividade e à violência, de renúncia ao individualismo econômico e às práticas predatórias que prejudicam a sobrevivência das gerações futuras. Esses valores deverão ser traduzidos em práticas e relações sociais concretas e todas as suas conseqüências humanas. Nosso pensamento e ação política expressam, ainda, a necessidade de uma nova ética para um novo mundo. As forças democráticas e transformadoras acreditam que um outro mundo é possível. Esse novo mundo deverá ser baseado em outros valores, radicalmente antagônicos aos que dominam hoje.
A sociedade global tem o seu lado enfermo e desumanizador, mas tem também outro lado, em que se escondem as oportunidades, as sementes do novo. As contradições da sociedade global dão a esta proposição um duplo caráter profético. Primeiro, a denúncia de toda a injustiça e desumanização inerentes ao sistema econômico e cultural centrado no capital, no produtivismo, no consumismo e na destruição da natureza. Segundo, o anúncio da emergência de uma nova ordem mundial, solidária, justa e pacífica. Uma nova sócio-economia com base em uma nova ética e novos valores culturais.


UM PROGRAMA DEMOCRÁTICO E REFORMADOR

Um programa democrático e reformador para o nosso país deverá ter os seguintes eixos orientadores:
a)     ação voltada para a integração à cidadania e para a garantia de direitos dos setores excluídos da sociedade;
b)     democratização radical das instituições políticas, ampliando a participação dos cidadãos nas decisões e aumentando a esfera de controle da sociedade civil sobre o Estado,com a preservação dos princípios da ética na política;
c)     radicalização da democracia social com a ampliação da garantia dos direitos sociais e da participação dos cidadãos nos fóruns de decisão e de aplicação e garantia de direitos;
d)     ampliação dos direitos econômicos dos trabalhadores, com uma maior participação nos lucros, uma maior participação dos trabalhadores nas decisões das unidades produtivas e nas instâncias decisórias das políticas industriais/agrárias/serviços e de emprego;
e)     ampliação dos direitos e garantias dos consumidores, com o incremento de suas organizações de defesa;
f)      ampliação das políticas de desenvolvimento sustentável, que levem em conta as necessidades de um meio ambiente saudável, a justiça social e a distribuição de renda e riqueza;
g)     resgate dos valores do humanismo e da solidariedade, com a defesa e promoção dos direitos humanos e das práticas e organizações civis de ajuda e apoio aos movimentos sociais;
h)     defesa de uma ordem mundial despolarizada onde a competição econômica agressiva ceda lugar à interdependência e colaboração entre países e, principalmente, a ajuda dos países ricos aos países pobres para que estes tenham acesso à tecnologia e ao conhecimento, permitindo o desenvolvimento auto-sustentado;
i)      fortalecimento e democratização das instituições mundiais de segurança, de comércio, de defesa do meio ambiente e ampliação do desarmamento e fortalecimento dos mecanismos de arbitragem pacífica dos conflitos territoriais, étnicos, religiosos civis etc.

UMA AGENDA PARA O SÉCULO XXI


O Brasil ingressou no século XXl com uma vasta agenda a cumprir. No plano político-institucional apresentou-se a tarefa de concluir a institucionalização democrática decorrente das condições estabelecidas pela Constituição de 88, bem como, corrigir-lhe os erros e as insuficiências. O centro dessa agenda situa-se nas reformas constitucionais e institucionais como a reforma da Ordem Econômica, a reforma do Estado, da Previdência, Tributária, do Judiciário, a reforma Política etc.
No plano econômico, continua importante tarefa do combate à inflação, principal fator de deterioração das rendas. A estabilidade monetária é ainda um dos requisitos mais importantes na recomposição das condições para um novo crescimento econômico. No plano social, o combate à exclusão e uma política de emprego apresentam-se como tarefas prioritárias.
Na agenda social, o novo governo deverá reafirmar em suas práticas o propósito de:
a)     manter a estabilidade da moeda, que deve ser encarada como um dos requisitos mais importantes para a modernização do país e promoção da cidadania. A história recente prova que a inflação é um fator importante de concentração de renda. Reforçar a estabilidade econômica ajudará a ganhar maior credibilidade junto à população;
b)     as reformas institucionais continuam imprescindíveis para aprofundar o grau de democratização do Estado, para torná-lo mais eficiente e para fortalecê-lo como instrumento de garantia do bem-estar, das políticas públicas como saúde, educação e habitação e para a garantia da segurança;
c)     o novo governo deverá formular políticas públicas alternativas, tanto compensatórias, como políticas capazes de incrementar de forma efetiva o ascensão de amplos setores marginalizados da população à cidadania, através de uma política de pleno emprego, de reforma agrária ampla, entre outras medidas.
O novo governo deverá, ainda, definir uma agenda sócio-econômica que articule cinco eixos básicos:
a) estabilidade econômica e monetária;
b) incremento do crescimento econômico;
c) criação de empregos;
d) distribuição de renda e riqueza;
e) qualidade de vida.


UM GOVERNO DEMOCRÁTICO E POPULAR

Para o novo governo poder realizar um programa democrático e reformador e construir uma agenda para o século XXI, precisará ter visão estratégica, um sentido de missão, flexibilidade tática, eficiência e eficácia operacional e, acima de tudo, sensibilidade social. No momento atual, a exigência em relação às forças políticas é muito maior do que no passado recente. Uma força política para ser efetiva no complexo e dinâmico mundo atual tem que estar antenada com as profundas mudanças e transformações que assolam a todo o mundo.
Ao mesmo tempo, deverá ser capaz de fazer leituras locais e regionais dessa complexidade dinâmica e traduzir essa leitura em propostas adequadas. Para se alcançar êxito, deverá ser iluminado por uma nova ótica e inspirado por uma nova ética. Existem evidentes ameaças ao patrimônio natural da vida e da humanidade. Isso nos obriga a obter consensos mínimos. Isso exige uma postura tolerante, Isso impõe que se aprenda a conviver com a diversidade e a superar sectarismos de vários matizes.
Reacende-se a crença no futuro do Brasil, reacende-se a esperança de um país inclusivo, justo, democrático e fraterno.  O novo governo, sob a direção da Presidente Dilma, iluminado pela nova ótica e inspirado na nova ética, poderá dar uma contribuição significativa nesta direção. A expectativa é que possa dar uma efetiva contribuição para a concretização da utopia irrealizada, mas não irrealizável que se expressa na afirmação final da Carta da Terra: Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência face à vida, pelo compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, a intensificação da luta pela justiça e pela paz, e a alegre celebração da vida.



UMA AGENDA PARA A SAÚDE EM GOIÁS

Fausto Jaime (*)


Considerações iniciais

A mídia, em todas as suas formas, reserva lugar de destaque para a crise no sistema de saúde brasileiro. Os hospitais têm se mantido em evidência por aspectos negativos, como as precárias condições dos serviços de urgência, de ambulatórios e de internação. As causas são claramente mencionadas: falta de pessoal, falta de material, falta de leitos, orçamento pequeno, enfim, faltam recursos de toda natureza.
É preciso que se exercite pensar o sistema como um conjunto de unidades, centros de saúde, unidades mistas, hospitais de diversos portes, além de outras modalidades, como é o caso do atendimento domiciliar; organizado por níveis de atenção — primário, secundário e terciário; com programas e serviços voltados para a promoção da saúde, a prevenção da doença, o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação.
A demanda da população por determinado equipamento ou nível de atenção varia, aumentando de quantidade, do nível para o primário para o terciário, o que permite que se regionalize o sistema, ou seja, um hospital terciário dando retaguarda a hospitais secundários, que, por sua vez, dão retaguarda a outras unidades de saúde.
Essa é a construção teórica do sistema. Na prática, nem a população procura o sistema nessa ordem, nem o sistema distribui os equipamentos de forma eqüitativa, ocorrendo que casos simples, que deveriam ser atendidos na atenção primária à saúde, sejam atendidos pelo nível secundário e terciário, sobretudo nas unidades de emergência, sobrecarregando-as e refletindo diretamente no aumento de custos.
Pesquisas demonstram que, em média, 80% dos casos atendidos nas unidades de saúde podem ser resolvidos com um bom exame clínico — tempo suficiente para paciente e profissional se comunicarem — e/ou prescrição de procedimentos simples. A expectativa é que uma atenção primária resolutiva resolva de 80 a 90% dos problemas de saúde da população.
As causas dessa distorção são culturais (sentimento de que se terão melhores cuidados em hospital terciário), políticas de distribuição de recursos e a capacidade de administração e logística da rede que às vezes leva a atendimentos insatisfatórios advindos de dificuldades com profissionais, equipamentos e materiais de consumo.
Especialmente a rede pública é afetada pela ausência de autonomia, requisito fundamental para planejar, coordenar e controlar recursos humanos e materiais para atender com rapidez e economia as necessidades de uma organização hipercomplexa como é o hospital.
É a falta de autonomia que impede os administradores de praticar uma política de recursos humanos condizente com as atividades dos profissionais, a contratação e demissão de pessoal, o investimento em treinamento e recapacitação, a colocação de material de consumo, medicamentos e equipamentos de acordo com o planejamento e as necessidades emergenciais que ocorrem.
As soluções para tais situações passam pelo desenvolvimento de políticas educacionais com foco em duas frentes. Para a comunidade, com a inclusão no currículo escolar das práticas de prevenção e promoção de saúde, além de informações sobre o funcionamento do sistema e como e onde começar a procurar atenção. Para os profissionais de saúde, a política deveria contemplar a formação de generalistas que saíssem da escola aptos a aceitar e resolver os 80% a 90% dos casos com o grau de complexidade que eles requerem.
Hoje já existe uma especialidade médica orientada para este tipo de atendimento que é a Medicina de Família e Comunidade. Esta especialidade é devidamente reconhecida pela Associação Médica Brasileira e já tem a sua sociedade de especialidade, que é a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, vinculada à          WONCA, Sociedade Mundial de Medicina de Família.
Com essas medidas, teríamos melhor aproveitamento das unidades primárias de saúde e mais próximas do local da residência. Estas unidades, dentro da própria comunidade, contribuiriam para eliminar grande parte do desperdício que ocorre com excessivo número de pedidos de exames laboratoriais, exames por imagem (raios-X, ultrassonografias, tomografias, ressonâncias magnéticas etc.), e custos com medicamentos desnecessários.
Para os profissionais, é imperioso que se deixe claro quais competências devem ser desenvolvidas, técnicas, administrativas e culturais para a segurança do seu exercício. Assim se formam profissionais para as necessidades do país.
É importante reforçar a questão do financiamento da saúde, suas fontes e a criação de consenso sobre as prioridades quanto à cobertura e à qualidade da assistência, cuja definição cabe à sociedade e aos poderes constituídos.


1. Crise na saúde pública em todo o país

Hospitais que são referência em todo o país estão lotados. Em várias capitais, médicos têm entrado em greve. Queixam-se da falta de um plano de carreira para os médicos do SUS. Os outros profissionais de saúde também não estão satisfeitos. Faltam verbas e falta manutenção adequada dos equipamentos. Pelos corredores, sobram doentes em macas.
Em comum, o reconhecimento: os hospitais de referência. Em comum, a agonia dos pacientes que esperam atendimento: Hospital das Clínicas, Hospital de Urgência de Goiânia; Hospital Materno Infantil; Hospital Geral de Goiânia. São problemas para todo lado.
Hospitais públicos em todo país enfrentam greves, falta de verbas e de manutenção. Pelos corredores, sobram doentes em macas. São exatamente os hospitais mais respeitados pela população que mais sofrem com o excesso de pacientes. Macas nos corredores e fila de espera a perder de vista e, às vezes, acrescenta-se mais um problema aos de todo o dia: médicos em greve.
No Hospital de Urgência de Goiânia, há algum tempo atrás uma parte do teto desabou por causa de uma infiltração. A maca precisou desviar e a água atingiu os corredores. Mesmo assim, o atendimento não foi suspenso. Eram quase mil pacientes atendidos por dia, mas a sua transformação em unidade de urgência referenciada permitiu a diminuição dos atendimentos para cerca de 400 atendimentos por dia, no entanto, estes em geral são mais complexos. Apesar dessa diminuição, nem sempre há lugar para todos, nem na emergência, nem nos quartos e enfermarias. Há uma superlotação crônica e uma grande demanda. A estrutura também não é adequada.
Já houve queixas da direção do hospital, que o excesso de pacientes é causado porque casos mais simples, que poderiam ser atendidos em centros de saúde e em outras unidades, estão indo parar no Hospital de Urgências.
Há superlotação também no Hospital Materno Infantil. O motivo é o mesmo: pessoas de outras cidades que chegam em busca de atendimento. Na verdade, o hospital é referência estadual para atendimento em alta complexidade na especialidade, mas tem uma estrutura muito acanhada para tamanha responsabilidade. É um hospital muito menor do que deveria ser para assumir esta condição de referência estadual.
Reportagens exibidas na televisão mostram, muitas vezes, salas lotadas, onde não há lugar para se sentar. Pacientes aguardam nos corredores em macas. Qualquer espaço vira uma enfermaria improvisada. Embora reconheçamos a inadequada estrutura do hospital para a complexidade de sua missão, entendemos que a grande questão é a carência no atendimento primário e secundário. O que ocorre é uma emergencialização desse tipo de atendimento no sistema hospitalar.
De uma maneira geral, as emergências dos hospitais que têm capacidade de resolver os problemas das pessoas, como é o caso do HUGO e do HMI recebe um grande afluxo que, a rigor, não teriam necessidade de acorrer para ali para receber o atendimento de que necessitam. O problema está em organizar a rede de atenção à saúde, com o funcionamento efetivo da atenção primária à saúde, fortalecimento da estratégia de saúde da família, a resolutividade das unidades básicas, dos prontos atendimentos não-hospitalares, dos hospitais básicos e de médio porte, que possam atender com qualidade à população em unidade próxima a sua residência.
A proposição estratégica é constituir uma parceria efetiva entre o estado e os municípios para implantar um novo modelo de atenção à saúde. O que se percebe é uma grande desorganização da saúde pública, que vai desde a atenção primária à saúde que precisa se tornar mais resolutiva e assumir o seu papel de centro de comunicação das redes de atenção à saúde.
Para isto é fundamental a qualificação da atenção primária à saúde, com o aumento da cobertura da Estratégia de Saúde da Família (ESF), a densificação tecnológica deste nível de atenção, a efetiva qualificação dos profissionais atuantes neste nível de atenção. Todo o pessoal que atua na área precisará ser envolvido no processo de reestruturação. Dessa forma, pode-se mudar a face da saúde no estado, que hoje está em situação difícil, a exemplo de outras unidades da federação. O fortalecimento da Atenção Primária à Saúde passa pela elaboração do Plano Diretor da Atenção Primária à Saúde.
Um problema central é que temos aquilo que Julio Frenk, ex-ministro da saúde do México e consultor da OMS, chama de “tripla carga de doenças”.  Enquanto nos países desenvolvidos, eles resolveram os problemas relativos às doenças agudas transmissíveis e depois passaram a ter um predomínio das condições crônicas, nós temos hoje um predomínio das condições crônicas, mas, ao mesmo tempo, convivemos com sérios problemas com as doenças agudas transmissíveis, a exemplo da dengue. Além disso, caracterizando a “tripla carga de doenças”, temos ainda uma grande incidência de agravos de causas externas, tanto intencionais – violências -, como não-intencionais – acidentes.
Diante de uma situação epidemiológica tão complexa, temos um problema central: o nosso sistema de saúde é orientado para as condições agudas. Ele não é capaz de responder satisfatoriamente à nossa situação de saúde em que há o predomínio das condições crônicas. Necessitamos de um modelo de atenção à saúde capaz de responder adequadamente às condições agudas e crônicas. Isto se fará através da estruturação das redes regionais de atenção saúde, com ênfase na atenção primária resolutiva. A grande missão deverá ser construir um pacto interfederativo tripartite, com a participação dos municípios, do estado e da União, voltado para a mudança do modelo de atenção à saúde, que expressa através da estruturação das redes de atenção à saúde.


2. Um panorama da crise que Goiás vive na área da Saúde

A crise na saúde no estado de Goiás é resultante de um processo mais longo, mais antigo, mas tem uma agudização recente. Isso é uma questão importante. Há uma vulnerabilidade na gestão da saúde. A discussão sobre a saúde do estado já tem sido foco de inúmeras denúncias.
Alguns gestores adotam uma estratégia de afirmar que a responsabilidade pela saúde não é dele, mas de outros níveis de governo. Nessa visão, a culpa da situação não é de uma eventual má gestão do gestor público, mas de responsabilidade de outras instâncias.
Essa é a manobra diversionista que se coloca. O que se propõe é uma ação conjunta com vistas a garantir o acesso das pessoas aos serviços. A perspectiva é reorganizar a atenção à saúde em profundidade, com a mudança do modelo de atenção à saúde e a estruturação das redes de atenção à saúde. É importante que esta missão seja assumida pelos três entes federados, evitando-se a situação atual em que um ente busca colocar a responsabilidade da situação crítica no outro ente federado.  Em verdade, todos são responsáveis pela situação e pela complexa solução necessária.


2.1 Dificuldades financeiras

É de conhecimento público a crise financeira porque vem passando do Governo do Estado, com indubitável repercussão no orçamento da saúde.
No âmbito federal, o próprio Ministério da Saúde reconhece que o orçamento do Brasil na área da saúde está abaixo de outros países da América Latina. Estamos atrás do Chile, Argentina e Colômbia. O governo gasta hoje 3,4% do PIB com saúde.
Devem-se colocar em pauta alternativas para recuperar o Orçamento Federal da Saúde, principalmente no que respeita ao financiamento da atenção primária – piso fixo e variável - e o financiamento de procedimentos de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar (MAC) Diante desse cenário, torna-se impossível a implantação de novos serviços e ainda há comprometimento da oferta e da ampliação dos serviços já existentes no âmbito do SUS.
Há uma inegável insuficiência de recursos do Ministério da Saúde para o Sistema Único de Saúde (SUS). Isso aflige principalmente os municípios, que, em muitos casos, vem gastando uma porcentagem acima dos 15% do Orçamento previstos na Emenda Constitucional 29. Por outro lado, o estado não tem gasto o mínimo constitucional de 12% do seu orçamento. Há vários anos os seus gastos tem andado em torno de 7% do orçamento, bem longe do mínimo constitucional. Inclusive o estado tem-se utilizado de manobras contábeis para ajustar legalmente os gastos com saúde às exigências da lei.
O CONASS e o Conasems fizeram uma Nota Técnica que identificou estrangulamento de recursos em três áreas fundamentais do Ministério da Saúde: atenção primária; MAC; e aquisição de medicamentos “excepcionais”.
Existe sim um problema muito sério de financiamento, mas existem também problemas culturais que impedem a mudança, a inovação, a criatividade e dificultam a sobrevivência e o crescimento.
A população procura os prontos-socorros dos grandes hospitais em busca dos melhores equipamentos e equipes para atendimentos de casos de baixa complexidade na esperança de encontrar soluções para suas expectativas e necessidades, já que por vezes a rede básica de saúde não contempla recursos humanos e materiais em quantidade e qualidade suficientes. Caracteriza ainda o uso inadequado de recursos, o que eleva os custos.


2.2 Como é que essa crise foi gerada?

Há pelo menos três elementos:
A primeira questão e mais importante é a já citada falta de adequação do nosso modelo de atenção à situação epidemiológica que caracteriza a nossa população. Embora tenhamos um predomínio das condições crônicas, temos um modelo de atenção orientado para as condições agudas. A persistência dessa situação decorre predominantemente da falta de visão estratégica da gestão em saúde e seus responsáveis. Em Goiás, a maior responsabilidade deste fato deve ser debitada à Secretaria de Estado da Saúde em que os últimos gestores não identificaram este problema e, de conseqüência, nada fizeram para solucioná-lo.
Não podemos deixar de apontar a pobreza das discussões da instância deliberativa que congrega o gestor estadual e os gestores municipais, a Comissão Intergestores Bipartite – CIB. Embora esta instância se reúna periodicamente (ela tem reuniões ordinárias mensais), a CIB não tem se dedicado a uma avaliação estratégica da situação de saúde do estado, nem das suas adequadas e profundas soluções. Esta instância tem-se caracterizado por discussões de caráter burocrático, que se perdem no operacional não chegando a atingir o nível tático e, muito menos, o estratégico.
Não podemos deixar de identificar certa dificuldade da participação da população em operar eficazmente essa problemática. Os Conselhos de Saúde não conseguiram ter uma atuação eficaz na avaliação e na denúncia da crise vivenciada. Isto já deveria ter-se iniciado quando ela ainda não estava num estado de calamidade, como a que nos encontramos. As instâncias de participação e controle social, conselho estadual e conselhos municipais de saúde, efetivamente, não operaram na intensidade e capacidade crítica que seria necessária.
A segunda questão é uma indagação para a qual não temos uma resposta definitiva: se os recursos existentes no estado das transferências do Governo Federal e a receita própria do estado e municípios são suficientes. Tudo indica que o volume total de dinheiro alocado no estado não seja suficiente para o funcionamento pleno do sistema. Qual a instância federada tem que aumentar os gastos? A resposta: o Governo Federal; o Governo Estadual; e os Governos Municipais. Essa é uma matéria de discussão política. Há sim um problema de falta de dinheiro, mas não se pode desconhecer um evidente estrangulamento, um gargalo na gestão. As administrações não têm um foco estratégico adequado e, no geral, são ineficientes.
A terceira questão é que efetivamente tem havido muitas dificuldades nesse processo de gestão do sistema como um todo. Conseguimos perceber com clareza a dificuldade quando, em tão pouco tempo, em algumas ações de deslocamento, de mobilização de recursos, você consegue esconder, apagar um pouco o fogo. Uma das questões fundamentais é que a gente deve buscar atender amplamente as necessidades da população, enfatizando as ações promocionais e preventivas, mas sem prejuízo das ações assistenciais. Sem um modelo de atenção adequado à situação de saúde fica muito difícil a adequação dos gastos e o atendimento das necessidades de saúde da população.


3. Que lições podemos tirar dessa crise? 

O primeiro passo importante é o desenvolvimento maior dos instrumentos que exigem o cumprimento da responsabilidade sanitária dos gestores. Isso tanto pelos dispositivos de questionamento judicial - quando um gestor de saúde não cumpre com a sua responsabilidade sanitária. Outra proposta muito interessante que está em pauta é a lei de responsabilidade sanitária - análoga a que existe de responsabilidade fiscal - com sanções ao gestor que não cumpra com as responsabilidades na gestão em saúde.
O segundo passo seria discutir mais a sério e mais profundamente as condições de financiamento que seriam sustentáveis para a rede do estado de Goiás, que é uma rede pública efetivamente grande e complexa. No que diz respeito aos hospitais estaduais, torna-se grandemente atual a questão do modelo de gestão dessas unidades. Os hospitais são organizações hipercomplexas que muito dificilmente poderiam ser administradas adequadamente pela administração direta como tem sido feito. A nossa proposta é a constituição de uma fundação estatal – fundação pública de direito privado – que pudesse assumir a responsabilidade pela administração dessas unidades.
A existência de uma fundação com esta atribuição liberaria a Secretaria de Estado da Saúde para o exercício de sua missão precípua que é a gestão do sistema estadual de saúde. Neste sentido, em vez de a Secretaria consumir todos os seus esforços e recursos com a manutenção dos hospitais, ela se voltaria para a sua verdadeira missão. A Secretaria se tornou de refém das suas unidades de saúde. O que está em discussão é a missão da Secretaria de Estado da Saúde. Ela deveria ser, como tem sido, uma secretaria prestadora de serviços ou um secretaria gestora e reguladora do sistema de saúde? A grande missão da Secretaria de Estado da Saúde é a gestão e a regulação do sistema de saúde. Este tipo de definição vai, por exemplo, identificar que tipo de profissionais deverão ser atraídos para trabalhar na Secretaria. Se for uma Secretaria prestadora de serviços deve priorizar a contratação de profissionais voltados para a prestação de serviços de saúde: médicos, enfermeiros, odontólogos, fisioterapeutas, psicólogos, nutricionistas, fonoaudiólogos e outros. Se a vocação da Secretaria for mais a missão de gestora e reguladora do sistema, há que se priorizar a contratação de gestores, planejadores, reguladores, controladores, avaliadores e outros profissionais relacionados à área de gestão e regulação. A missão definiria também a política de educação permanente e a natureza das capacitações a serem proporcionadas aos seus quadros profissionais.
O terceiro passo é examinar com mais cuidado a devida utilização de recursos dentro do sistema. A crise, na verdade, instaura um momento de mediação da calamidade pública, mas precisará levar adiante a missão de fortalecer o Sistema Único de Saúde, com um comando único em cada instância, com o funcionamento efetivo da Comissão Intergestores Bipartite, dos Colegiados de Gestão Regionais e a estruturação das Redes Integradas de Atenção à Saúde.
Esse é o desafio que a gente terá que percorrer. Se o gestor assume essa responsabilidade, ele tem que cumpri-la. Essa é uma questão que se coloca para diante. A crise é capaz de chamar atenção para o fato de que estamos tendo alguns problemas e que talvez a vontade política da gestão não corresponda à responsabilidade pela solução dos problemas. Talvez mais do que imputar ao outro o problema, o que não resolve a questão do sistema. Efetivamente, cada gestor deve assumir as responsabilidades que lhe competem. Com o Pacto pela Saúde, instituído a partir de fevereiro de 2006, essas responsabilidades se tornaram muito mais claras e explícitas. A Secretaria de Estado da Saúde tem a importante missão de coordenar o sistema estadual de saúde, dirigindo a realização de sua missão histórica de realizar os preceitos constitucionais do SUS de universalidade, integralidade e equidade.


4. De que maneira a discussão dos princípios de universalidade, de integralidade e equidade pode contribuir para a solução do problema?

O aspecto central quando a gente discute a crise da saúde é que ela se torna mais visível quando ela deixa de cumprir algum destes princípios constitucionais do SUS. Quando assistimos a superlotação das emergências, é bom lembrar que as portas de entrada das urgências é um local que responde a um sofrimento imediato, a um sofrimento que está manifesto e algumas vezes “ruidoso” no sentido a atrair a atenção da mídia sempre pronta a identificar possíveis falhas no sistema.
Uma das questões fundamentais da noção de integralidade é que a gente deve buscar atender amplamente as necessidades da população, enfatizando as ações preventivas e promocionais, mas sem prejuízo das ações assistenciais.
A primeira lição que a integralidade coloca é que é importantíssimo responder às demandas que as pessoas manifestam no sistema de saúde. No entanto, é necessário ir além disso. Torna-se importante que as redes de atenção à saúde avancem para efetivamente identificar outras necessidades, além daquela que gera aquele atendimento. Estas precisam e podem, muitas vezes, ser atendidas antecipadamente pelo sistema de saúde. É necessário identificar com antecedência fatores de risco, determinantes e condicionantes do processo saúde-doença, enfim, coisas que possam ser melhoradas para reduzir riscos de doença. Essa perspectiva é importante. Além de qualificar a assistência, não podemos perder a perspectiva da prevenção e da promoção da saúde.
A segunda lição é que o conceito de integralidade é incompatível com o destrato do ser humano, é incompatível com grandes filas de espera. A fila é um signo importante da falta de universalidade e de desintegralidade. Isto quer dizer que as necessidades não estão sendo atendidas adequadamente. A mudança do modelo de atenção com o fortalecimento da atenção primária à saúde e estruturação das redes de atenção é uma condição sem a qual não se conseguirá atender adequadamente a população, bem como, diminuir a superlotação das portas de entrada das urgências.
O sistema tem que ser capaz de responder com adequação à oferta da atenção integral, de responder ao pronto atendimento, de atender a urgência quando ela é necessária, mas priorizando o devido atendimento das condições crônicas, com o estabelecimento das linhas de cuidado, com o fortalecimento da atenção primária à saúde, capaz de oferecer a atenção continuada ou longitudinal. Os profissionais de saúde, especialmente os da atenção primária, precisarão desenvolver uma escuta sensível e oferecer um atendimento humanizado, tornar-se capaz de responder a necessidade de conversa que algumas pessoas têm sobre determinadas atitudes ou comportamentos de risco. Isso precisa ser feito com dignidade, dialogando com o sujeito, entrando em contato com ele.
O alvo do desenho do sistema que queremos é um sistema no qual a integralidade seja o traço predominante. Então a integralidade tem muito a contribuir, porque ela define uma característica alvo, pela qual a população se dispõe a lutar.


5. A origem da atual crise da rede pública está na inadequação do modelo de atenção, na falta de planejamento das ações e dos gastos e na gestão ineficiente da rede.

A concentração de investimentos da saúde no atendimento dos casos de emergência, deixando em segundo plano a medicina preventiva e a atenção primária à saúde realizada pelas unidades básicas e pelos postos de saúde, constitui-se em sério problema. Isto agravou ainda mais a crise, pois contribuiu para a superlotação dos hospitais e fez com que milhares de atendimentos e cirurgias não-emergenciais deixassem de ser feitas.
Nos hospitais da rede pública, as dívidas com os fornecedores quase sempre não são pagas no devido tempo. O calote leva fornecedores a interromperem contratos vitais para os hospitais, como de manutenção e alimentação, comprometendo a qualidade do atendimento nas emergências.
A crise é fruto, ainda, de uma grande precariedade de gerência hospitalar e também da falta de planejamento e gestão do sistema de saúde. A grande questão é a carência no atendimento primário e secundário. O que leva a uma emergencialização no sistema hospitalar.
 Por outro lado, a Programação Pactuada e Integrada (PPI), que é um mecanismo que assegura o financiamento dos procedimentos de média e alta complexidade, não expressa devidamente os fluxos de pacientes dentro das regiões e do estado. A PPI precisa ser feita de forma mais participativa e compreensiva por parte dos gestores, com a instituição de pactuações regionais e com o melhor esclarecimento dos gestores participantes.


6. Propostas de solução da crise: Ações prioritárias

As propostas prioritárias inicialmente são as que citamos abaixo.

6.1 Aumentar a resolutividade da atenção primária à saúde.
Isto ocorrerá com a formulação dos Planos Diretores da Atenção Primária à Saúde – PDAPS, com a ampliação e a qualificação da Estratégia de Saúde da Família – ESF nos municípios, com a efetiva participação do estado no custeio da atenção primária, a criação de Centrais Municipais de Regulação para a regulação da atenção básica e encaminhamento do atendimento para outros níveis de atenção. Para a qualificação da atenção primária, é fundamental a formulação de Planos Diretores da Atenção Primária à Saúde – PDAPS. Uma diretriz baseada em evidências internacionais é que a atenção primária resolutiva deverá promover uma densificação tecnológica da atenção primária. As unidades básicas deverão ser dotadas de equipamentos, até mesmo alguns hoje classificados como de média complexidade. A atenção primária resolutiva assume também a responsabilidade por alguns procedimentos de média complexidade, tomando como referência principalmente os procedimentos que a NOAS 01/2002 classificava como M1.

6.2 Estruturar as redes regionais de atenção à saúde.
Este um processo a ser liderado pelo gestor estadual, com o apoio do gestor federal e a ampla e ativa participação dos gestores municipais de saúde. A estruturação poderá se dar inicialmente com a modelagem de algumas redes temáticas como: a rede de atenção à saúde da mulher, da criança e do adolescente; a rede de atenção às urgências; a rede de hipertensão e diabetes; a rede de saúde mental , com ênfase na questão da dependência química; a rede do idoso; a rede de saúde bucal, entre outras.
Em nenhum sistema de saúde do mundo, procura-se organizar o sistema de saúde como um todo de uma só vez. A estratégia é organizar as redes temáticas (RT) escolhidas prioritariamente com base na análise epidemiológica da população da área de abrangência e da situação do sistema de saúde existente. Cada rede temática organizada tem um impacto estruturante sobre todo o sistema. Por exemplo, a estruturação da rede de atenção às urgências, implica a implantação e/ou aumento da resolutividade das Unidades de Prontos Atendimentos - UPA o que virá a desafogar o atendimento nos hospitais. Por outro lado, uma atenção primária resolutiva, diminui a demanda de procedimentos de média e alta complexidade, ambulatoriais e hospitalares.

6.3 Estruturar e fortalecer a atuação dos Complexos Reguladores.
É importante a estruturação dos complexos reguladores municipais e regionais. Esses complexos fazem parte da estrutura logística das redes de atenção à saúde. Os complexos reguladores colocam-se a serviço da integralidade. A sua missão é assegurar o acesso aos procedimentos de saúde adequados para cada caso. O seu papel é racionalizar os recursos assistenciais existentes, em especial, as vagas nos hospitais públicos e nas unidades privadas contratadas e integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS).

6.4 Transformar efetivamente o Hospital de Urgência de Goiânia (HUGO) e do Hospital Materno Infantil (HMI) em Unidades de Urgência Referenciada.
Esta providência que já foi iniciada, mas necessita de ser aprofundada e efetivada de fato. Isto significa que essas unidades deixariam de ter prontos-socorros de portas abertas para terem suas portas de entrada reguladas. Essa regulação deverá ser feita pelo Complexo Regulador Metropolitano de Goiânia.

6.5 Estruturar os Hospitais Regionais nas regiões onde isto se fizer necessário na lógica da estruturação de redes de atenção à saúde.
A estruturação das Redes Regionais de Atenção à Saúde deve-se realizar com os seguintes princípios: 1) autonomia dos municípios em atenção primária à saúde; 2) autonomia das regiões de saúde em atenção secundária à saúde (média complexidade); 3) autonomia das macrorregiões em atenção terciária (alta complexidade).
Hoje Goiás em seu Plano Diretor de Regionalização (PDR) foi dividido em cinco macrorregiões e dezesseis regiões de saúde. Na estruturação das redes regionais e das macrorregiões se deverá repensar a assistência em sentido integral. Onde houver lacunas assistenciais, inclusive hospitalares, estas lacunas deverão ser preenchidas. No entanto, a detecção destas lacunas deverá ser feita de forma tecnicamente adequada e politicamente participativa pelas instâncias gestoras bipartites, abertas à participação e ao controle social.

6.6 Estruturar em todos os hospitais públicos os Núcleos Internos de Regulação (NIR).
Estes Núcleos fazem a interface dessas unidades com os Complexos Reguladores. Em algumas unidades, este dispositivo já está funcionando adequadamente.

6.7 Instituir o Acolhimento com Avaliação e Classificação de Risco em todas as portas de entradas das urgências.
Esta orientação vale tanto para as Unidades de Prontos Atendimentos (UPA) como para os Prontos-Socorros hospitalares (PS). O Acolhimento com Avaliação e Classificação de Risco é um dispositivo da Política Nacional de Humanização que deverá ser uma referência em sua estruturação. É desejável que o mesmo Protocolo de Classificação de Risco seja adotado em todo estado como forma de unificar e facilitar a comunicação entre as diferentes instâncias, unidades de saúde, centrais de regulação e gestores.

6.8 Estruturar adequadamente o transporte sanitário.  
O transporte sanitário é parte da infra-estrutura logística das redes de atenção à saúde. No que diz respeito ao transporte de pessoas, este transporte trata tanto do transporte eletivo, com o de urgência. O transporte sanitário contempla também o transporte de amostras para exames e o transporte dos resíduos sólidos (a exemplo do lixo dos hospitais e das unidades de saúde). No que respeita ao transporte de urgência, que é acompanhado também de ações de assistência, torna-se importante a integração do SAMU e do SIATE com regulação médica da urgência unificada. Estes dois serviços já têm algum grau de integração em Goiânia, mas poderiam ser também integrados no âmbito estadual.

6.9 Reorganizar o Sistema Estadual de Regulação da Atenção à Saúde.
Este sistema é constituído pelos seguintes componentes: Gerência de Regulação, Controle e Avaliação; a Câmara Técnica de Regulação e Protocolos (que já funcionou por um período que precisa ser reativada); o Complexo Regulador Estadual (em estruturação); os Complexos Reguladores Regionais e os Complexos Reguladores Municipais.

6.10 Desenvolver a estratégia dos Municípios e Comunidades Saudáveis e Protetores da Vida.
Esta proposta inclui estratégias preventivas e promocionais para a melhoria da qualidade de vida e o enfrentamento dos agravos de causas externas, tanto os intencionais (violências) como os não-intencionais (acidentes).

6.11 Constituir a Comissão Metropolitana de Saúde

Deverá ser criada a Comissão Metropolitana de Saúde com o objetivo de encontrar soluções para os problemas da saúde da Região Metropolitana de Goiânia, onde essa crise se expressa de maneira mais ruidosa e dramática.
A Comissão Metropolitana de Saúde deverá ser formada por integrantes dos governos federal, estadual e dos municípios da Região Metropolitana. Aproveitar o momento para fazer com que o SUS se qualifique. Para isso é necessário debater e avançar para solucionar as questões sanitárias com a efetiva implantação das redes de atenção à saúde, orientadas para as condições crônicas e agudas, funcionando de maneira integrada e resolutiva.
Uma Audiência Pública deverá ser promovida pelo Conselho Estadual de Saúde em conjunto com os Conselhos Municipais de Saúde dos Municípios da Região Metropolitana para discutir a crise na saúde e as propostas de solução.


6.12 Fortalecer a Participação e Controle Social

Torna-se importante e necessário o aprofundamento da discussão promovida pelos conselhos de saúde sobre os problemas da saúde pública no estado com foco nas regiões de saúde e, de maneira especial, na região metropolitana de Goiânia. Nos termos da lei, essas instâncias devem contar com a participação de usuários e suas associações de defesa, trabalhadores e suas organizações, gestores, prestadores e organizações da sociedade civil.
Os problemas do SUS são de responsabilidade das três esferas de governo. Isso é Constitucional. Os conselhos de saúde são interlocutores importantes, no estado e nos municípios. A expectativa é ajudar e contribuir neste processo e assegurar uma participação efetiva da sociedade civil organizada através dos diversos conselhos e entidades participantes.
Uma Audiência pública com a participação do Conselho Estadual e dos Conselhos Municipais poderia aprovar os Fóruns Regionais de Conselhos de Saúde e um Fórum Metropolitano de Conselhos de Saúde que se reúna regularmente para avaliar os fatos relativos ao sistema de saúde e encaminhar as demandas existentes. Este fórum deverá ser composto pelo conselho estadual e pelos conselhos municipais de saúde da região correspondente, inclusive da região metropolitana.


Considerações finais

Um novo desenho do SUS, com vistas à constituição das redes integradas de atenção à saúde, se coloca como proposta primordial de mudança do modelo de atenção à saúde. A questão primordial é adequar o modelo de atenção à saúde à realidade sanitária existente em nosso estado. Em nossa epidemiologia temos uma realidade sanitária complexa com visível predominância das condições crônicas. No entanto, o nosso modelo de atenção à saúde é orientado para as condições agudas.
A realização desta mudança de modelo de atenção à saúde é estratégica para assegurar os preceitos constitucionais do SUS de universalidade, integralidade equidade. Este objetivo só pode ser atingido através de pacto interfederativo, com participação do gestor federal, do gestor estadual e dos gestores municipais. A realização deste propósito deve ser feita de maneira democrática assegurando-se também a participação e o controle social. Será necessário que este se reorganize para atender a nova e complexa realidade, criando uma instância de participação regional como os fóruns regionais de conselhos de saúde.
A concretização das redes regionais de atenção à saúde está também relacionada à possibilidade de formação de pessoas com capacidade para articular diferentes espaços de governo. Isto só ocorrerá adequadamente  respeitando-se a autonomia e a legitimidade local. Ao mesmo tempo, esses atores se inserem na disputa pela conformação dos modelos de atenção e das próprias características das redes de atenção nos municípios e nas regiões.
No campo da organização da atenção da primária à saúde, a lógica hegemônica vigente induz a uma homogeneização da rede de atenção e de reprodução de programas. A nossa proposta aponta para o fato de que a atenção primária é um lugar privilegiado de invenção de novas formas de produzir a gestão, a atenção e o cuidado em saúde, apesar das situações de grande instabilidade que acompanham as situações de crise. Este nível de atenção é o grande centro de comunicação das redes de atenção à saúde. Para assumir este papel central, torna-se necessário a qualificação não somente em termos assistenciais, mas na própria gestão atenção à saúde.


(*) Fausto Jaime é médico, gestor público e professor universitário; é especialista em medicina intensiva, em saúde pública, em gestão hospitalar e em auditoria em serviços de saúde. É Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Especializando em gestão pública pela Fundação Getúlio Vargas e Doutorando em Bioética pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em Portugal.