Lamento dos Afrodescendentes:
treze de Maio
Leonardo Boff
12/05/2012
Hoje, 13 de maio, é o dia das mães.
Mas não esqueçamos a mães negras, especialmente as “amas-de-leite”, as mucamas.
Quantas crianças brancas não foram por elas amamentadas e salvas?
Agora, finalmente a Justiça fez
justiça aos afrodescendentes, pagando uma dívida histórica que pesava em nossa
consciência branca coletiva. Foram-lhes concedidas as cotas de acesso às
universidades federais. Mas a nossa dívida começou apenas a ser paga. Há tantas
reparações e compensações ainda por fazer.
Enquanto isso a Paixão de
Cristo continua pelos tempos afora no corpo destes crucificados. Jesus
agonizará até o fim do mundo, enquanto houver um único destes seus irmãos e
irmãs que estejam ainda pendendo de alguma cruz.
Assim pensa também o budismo
tibetano. O bodhisattwa (o iluminado) pára no umbral do
Nirvana e suplica retornar ao mundo da dor – samsara – para
viver solidariamente com quem sofre no reino humano, animal e vegetal.
Nesta mesma convicção, a Igreja Católica, na liturgia da Sexta-feira Santa,
coloca na boca do Cristo estas palavras pungentes:
”Que te fiz, meu povo eleito? Dize em
que te contristei! Que mais podia ter feito, em que foi que te faltei? Eu te
fiz sair do Egito e com maná de alimentei. Preparei-te bela terra, e tu, a cruz
para o teu rei”.
Rememorando a abolição da escravatura
a 13 de maio, nos damos conta de que ela não foi completada ainda. A paixão de
Cristo continua na paixão do povo afrodescendente. Falta a segunda abolição, da
miséria e da fome, como postula o senador Cristovam Buarque. Ouvem-se ainda os
ecos dos lamentos de cativeiro e de libertação, vindos das senzalas, hoje das
favelas ao redor de nossas cidades:
“Meu irmão branco, minha irmã
branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!”
Eu te inspirei a música carregada de
banzo e o ritmo contagiante. Eu te ensinei como usar o bumbo, a cuíca e o
atabaque. Fui eu que te dei o rock e a ginga do samba. E tu tomaste do que era
meu, fizeste nome e renome, acumulaste dinheiro com tuas composições e nada me
devolveste.
Eu desci os morros, te mostrei um
mundo de sonhos, de uma fraternidade sem barreiras. Eu criei mil fantasias
multicores e te preparei a maior festa do mundo: dancei o carnaval para ti. E
tu te alegraste e me aplaudiste de pé. Mas logo, logo, me esqueceste, reenviando-me
ao morro, à favela, à realidade nua e crua do desemprego, da fome e da
opressão.
Meu irmão branco, minha irmã branca,
meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!
Eu te dei em herança o prato do
dia-a-dia, o feijão e o arroz. Dos restos que recebia, fiz a feijoada, o
vatapá, o efó e o acarajé: a cozinha típica da Bahia. E tu me deixas passar
fome. E permites que minhas crianças morram famintas ou que seus cérebros sejam
irremediavelmente afetados, infantilizando-as para sempre.
Eu fui arrancado violentamente de
minha pátria africana. Conheci o navio-fantasma dos negreiros. Fui feito coisa,
“peça”, escravo. Fui a mãe-preta para teus filhos e filhas. Cultivei os campos,
plantei o fumo para o cigarro e a cana para o açúcar. Fiz todos os trabalhos. E
tu me chamas de preguiçoso e me prendes por vadiagem. Por causa da cor da minha
pele me discriminas e me tratas ainda como se continuasse escravo.
Meu irmão branco, minha irmã branca,
meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!
Eu soube resistir, consegui fugir e
fundar quilombos: sociedades fraternais, sem escravos, de gente pobre mas
livre, negros, mestiços e brancos. Eu transmiti, apesar do açoite em minhas
costas, a cordialidade e a doçura à alma brasileira. E tu me caçaste como
bicho, arrasaste meus quilombos e ainda hoje impedes que a abolição da miséria
que escraviza, continue como realidade cotidiana e efetiva.
Eu te mostrei o que significa ser
templo vivo de Deus. E, por isso, como sentir Deus no corpo cheio de axé e celebrá-lo
no ritmo, na dança e nas comidas sagradas. E tu reprimiste minhas religiões
chamando-as de ritos afro-brasileiros ou de simples folclore. Não raro, fizeste
da macumba caso de polícia.
Meu irmão branco, minha irmã branca,
meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!
Quando com muito esforço e sacrifício
consegui ascender um pouco na vida, ganhando um salário suado, comprando minha
casinha, educando meus filhos e filhas, cantando o meu samba, torcendo pelo meu
time de estimação e podendo tomar no fim de semana uma cervejinha com os
amigos, tu dizes que sou um negro de alma branca, diminuindo assim o valor de
nossa alma de negros, dignos e trabalhadores. E nos concursos em igual condição
quase sempre tu me preteres em favor de um branco. Porque sou negro.
E quando se pensaram políticas
públicas para reparar a perversidade histórica, permitindo-me o que sempre me
negaste, estudar e me formar nas universidades e assim melhorar minha vida e de
minha família, a maioria dos teus grita: é contra a constituição, é uma
discriminação, é uma injustiça social. Mas finalmente a Justiça agora nos fez
justiça e nos abriu as portas das universidades federais.
Meu irmão branco, minha irmã branca,
meu povo: Que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!”
“Responde-me, por favor”.
E nós brancos, os que dispomos do
ter, do saber e do poder, geralmente calamos, envergonhados e cabisbaixos. É
hora de escutar o lamento destes nossos irmãos e irmãs afrodescendentes, somar
forças com eles e construir juntos uma sociedade inclusiva, pluralista,
mestiça, fraterna, cordial onde nunca mais haverá, como ainda continua havendo
no campo, pessoas que se atrevem a escravizar outras pessoas.
Oxalá possamos gritar: “escravidão
nunca mais”. E enxugando as lágrimas podemos dizer como no Apocalipse: “Tudo
isso passou”.
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