sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Brasil, um país sério!

Fausto Jaime

Já disseram que a frase "O Brasil não é um país sério" era do presidente francês Charles de Gaulle (1890-1970). No entanto, esta frase é de autoria do embaixador brasileiro na França, Carlos Alves de Souza, dita ao jornalista Luiz Edgar de Andrade, que na época era correspondente do "Jornal do Brasil" em Paris. Esta afirmação foi feita pelo embaixador a propósito da discussão com o General De Gaulle sobre a "Guerra da Lagosta", em 1962, quando barcos franceses pescavam o crustáceo na costa brasileira.  
O embaixador Souza relatou ao jornalista Edgar o encontro dizendo-lhe que falaram sobre o samba carnavalesco "A lagosta é nossa" e das caricaturas que faziam dele (De Gaulle). O embaixador terminou a conversa com o jornalista da seguinte forma: "Edgar, le Brésil n'est pas un pays sérieux". O sentido desta afirmação era de que o povo brasileiro era brincalhão e fazia troça de tudo. O jornalista mandou o despacho para o jornal e a frase acabou outorgada a De Gaulle e lhe dando outro sentido, o de que o Brasil era não era um país sério.
Como bem ensinou Jobim, e toda a gente sabe, “o Brasil não é para amadores”. Quando as coisas se complicam demais no Brasil, à falta de melhores argumentos, sempre alguém acaba por rematar com a velha frase atribuída a De Gaulle – “Lé Brésil n’est pas un pays sérieux”...
É o que acontece agora, em que assistimos a assanhada luta política, numa novela que se arrasta há mais de um ano e - à medida que se aproxima do seu epílogo - aparece cada vez mais recheada de episódios ora inusitados e pitorescos, ora dramáticos e rocambolescos, por vezes mesmo com dimensão de verdadeiros golpes de teatro. Afirmar, como um adulto falando de um adolescente, que o “Brasil não é um país sério”, pode conferir um sentimento de reconfortante maturidade sustentada na autoridade política daquele que foi um dos grandes líderes europeus do século XX.
Mas nem De Gaulle jamais disse algo parecido, ainda que porventura o tivesse pensado, nem a repetição da “boutade” adianta muito para a compreensão das complexas realidades brasileiras. Para já não falarmos de que também alguns países europeus têm conhecido recentemente – Bélgica, Espanha... – ou mais remotamente – Itália... – crises de poder tão agudas e agitadas quanto aquela que hoje abala de novo o Brasil.
A autoria da frase pertence confessadamente ao diplomata brasileiro Carlos Alves de Souza Filho, que foi embaixador do Brasil em França, entre 1956 e 1964. Nada como um brasileiro – ou um português – para, entre os seus, denegrir amorosamente o seu próprio país... A exclamação foi feita off the record ao correspondente do Jornal do Brasil em Paris, que no entanto a reproduziu, atribuindo-a – segundo o próprio embaixador, por engano, e não por malícia - ao General De Gaulle. Repetida desde então até à saciedade, tornou-se uma espécie de lugar comum elegante para uso indiscriminado e bem pensante de diplomatas, jornalistas, políticos e comentadores de todos os quadrantes. No entanto, não nos ajuda nada a entender nem as razões profundas da crise que abala a estabilidade política do país, nem as agudas manifestações de que essa crise por vezes se reveste - como agora acontece - à beira de uma ruptura institucional, com os diferentes poderes digladiando-se a céu aberto, além de exporem também em público as suas próprias divisões internas. Pessoalmente, vejo quatro grandes razões na origem da agitação que abala o Brasil – uma de caráter comportamental, outra política e duas de ordem sistêmica. Tudo isto, claro, num quadro de recessão, com todas as consequências negativas daí decorrentes – juros altos, inflação, desemprego, descontentamento generalizado.
Voltando à questão inicial e para concluir – “o Brasil não é um país sério”? Mais do que um juízo superficial baseado apenas no folclore dos comportamentos políticos, impõe-se considerar a história, compreender as razões das atitudes, conhecer as fontes de inspiração do direito e a relativa juventude da democracia brasileira. Há uma crise profunda, é certo, mas há também uma vitalidade enorme e um fortíssimo apego à liberdade que se impõe valorizar. Um fato inspira confiança – apesar da agudeza do confronto, não houve até agora ruptura institucional e a hipótese de uma intervenção dos militares parece totalmente afastada. Por outro lado, também não há sentimento de tragédia – o que predomina, por entre todas as convulsões, parece ser uma infinita confiança de que tudo se haverá de compor e o Brasil acabará por encontrar o caminho de grandeza que todos acreditam lhe está reservado e as suas imensas riquezas prometem.
Tudo sinais de que o Brasil, apesar das suas peculiaridades tropicais e das mil peripécias a que vimos assistindo, é, sim, um país que - sem se tomar excessivamente a sério – tem em si mesmo a força anímica necessária para, sem muitos traumas, superar a crise e avançar na senda de um futuro à medida das suas ambições de sempre.
Carlos Alves de Souza Filho foi um diplomata brasileiro, genro do Presidente Artur Bernardes de fontes. Serviu como embaixador em Roma de 16 de fevereiro de 1950 a 20 de fevereiro de 1956, em Paris (1956-1964) e em Londres (1964-1966). Foi personagem fundamental no conflito diplomático envolvendo o Brasil e a França, que ficou conhecido como Guerra da Lagosta. Foi ele o intermediário entre o governo brasileiro e Charles de Gaulle, e é autor da famosa frase "O Brasil não é um país sério", erroneamente atribuída a de Gaulle.
No ano de 1962, quando houve a Guerra da Lagosta entre o Brasil e a França, o general de Gaulle, então presidente da França, teria dito que o Brasil não é um país sério. Há controvérsias sobre a tal autoria. Há quem diga que a exclamação teria sido mais do embaixador brasileiro em Paris, do que propriamente do General presidente. Mas o fato é que a frase – le Brésil n’est pas um pays sérieux – e a autoria desta como atribuída a De Gaulle, entraram como tais para a história.
Para uma controvérsia do tipo que acabamos de citar, a língua italiana nos brinda com o dito: se não for verdade, não deixa de ser um brilhante achado! (si non è vero, è bene trovato). Brincadeiras à parte, se De Gaulle estivesse vivo hoje, olhando para o Brasil - ano 2017, com os poderes nacionais que temos, pós-impedimento da presidenta Dilma – executivo, legislativo e judiciário – o mínimo que poderia fazer em nosso favor, seria repetir sua frase do ano de 1962 que marcou a guerrinha da lagosta. Concordaríamos com de Gaulle, em gênero, número e grau.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

O Movimento de Indignação e Esperança no Brasil

O Movimento de Indignação e Esperança no Brasil
Fausto Jaime
Exposição feita no Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores de Goiânia em 19/06/2013.

Cumprimento a todos os presentes e agradeço o convite do Deputado Luiz César Bueno para estar aqui hoje e falar com vocês. Após cumprimentá-los, quero dizer que há muito tempo, por razões pessoais e profissionais, eu me afastei de uma prática política ativa no Partido dos Trabalhadores – PT. No entanto, é importante ficar claro que eu me afastei das práticas cotidianas do PT, mas o PT nunca se afastou de mim. Eu o acompanho pari passu como um pai que acompanha um filho.
Nós fundamos o PT em um Congresso no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo em fevereiro de 1980, quando aprovamos o Manifesto e o Programa do Partido. Eu estava ali presente como representante do estado de Goiás, junto com valorosos companheiros com o professor Athos Magno da Costa e Silva, entre outros representantes que não vou citar no momento, sob risco de alguma omissão. Tive a oportunidade de participar da comissão que elaborou o Programa do Partido, para ser submetida ao Plenário do Congresso. Esta comissão foi coordenada, então, pelo companheiro, o professor Francisco Weffort, que posteriormente se afastou do Partido.
Quero testemunhar que foi decisiva a participação do estado de Goiás na fundação do Partido dos Trabalhadores – PT. Naquela época, para se fundar um partido era necessário que o partido fosse estruturado em pelo menos nove estados da federação. Para se fundar um partido nos estados era necessário que ele se estruturasse em 20% dos municípios. Naquela época, isto correspondia a quarenta e dois municípios. O PT conseguiu se estruturar exatamente em nove estados. O estado de Goiás se estruturou exatamente em quarenta e dois municípios. Esta conquista se deu pela atuação dedicada, destemida e cheia de sacrifícios de valorosos companheiros que se comprometeram com este projeto.
Os estrategistas da ditadura, ao instituir esta cláusula de barreira imaginavam que nenhum partido de esquerda conseguiria este feito. O Partido dos Trabalhadores conseguiu. Enfrentamos para isto a repressão do regime e as calúnias e difamações de outros partidos de esquerda. Estes nos acusavam na época de sermos divisionistas das oposições. Eles defendiam que toda a oposição deveriam se concentrar em um só partido, o PMDB. Nós achávamos que já era hora de termos um partido de esquerda democrática legalizado no país. Nós estávamos certos. A história provou isto.
No entanto, não foi para relembrar a história do Partido que fomos convidados hoje e sim para participarmos da reflexão sobre o momento que vivemos hoje no Brasil. Depois da surpresa, o correto é nos mobilizarmos em torno do Movimento de Indignação no Brasil. É hora de refletirmos sobre a teoria e a prática dos movimentos sociais na atualidade. É compreensível que em um primeiro momento sejamos pegos de surpresa. No entanto, o adequado é que nos mobilizemos em torno destes protestos que se difundem viralmente por todo o Brasil.
Estou aqui, de propósito, utilizando um termo que lembra o contágio estudado pela medicina e, ao mesmo tempo, é uma forma de disseminação que identificamos na Internet e no mundo dos computadores. Analisar esta nova realidade nos levará a repensar as nossas práticas políticas, valorizando aspectos que não valorizávamos até então. O mundo mudou e temos que adequar as nossas práticas políticas ao novo mundo em que vivemos, sob o risco de, se não nos posicionarmos de maneira adequada, enfrentarmos problemas mais sérios do já enfrentamos até agora.
Uma análise de conjuntura é um retrato dinâmico de uma realidade. Ela não é uma simples descrição de fatos ocorridos em um determinado local e período. A boa análise de conjuntura deve ir além das aparências e buscar a essência da realidade. No entanto, é bom lembrar, que a realidade mundial, nacional ou local, é complexa e multifacetada. Isto torna difícil a sua apreensão e compreensão à primeira vista.
O grande desafio de qualquer análise de conjuntura é contemplar a realidade complexa e compreender as relações entre as partes que formam o todo. Lembremos de que a totalidade é um conjunto de múltiplas determinações. Neste sentido, a análise de conjuntura funciona como um mapa que permite nos orientar na realidade. Existem diferentes tipos de mapas, alguns mais detalhados, outros menos detalhados. Existem ainda diferentes tipos de mapas. Cada mapa é definido em função de um objetivo e tem a sua própria escala. A análise de conjuntura é assim também. Ela busca traçar um mapa da correlação das forças econômicas, políticas e sociais que constituem a estrutura e a superestrutura da sociedade, as quais se vinculam através de relações de poder.
Fazer uma boa análise de conjuntura é fundamental para iluminar a nossa prática, para orientar os passos a serem dados pelos dirigentes de um grupo político. Para se fazer uma boa análise de conjuntura, é importante conhecer bem as próprias forças e as forças dos eventuais adversários. Por outro lado, é fundamental que nos posicionemos adequadamente dentro da conjuntura. A atuação política se assemelha a um jogo, onde a cada ação corresponde uma reação do adversário.
Isto me faz lembrar uma anedota que era contada pelo planejador e estrategista Carlos Matus, ex-ministro chileno do Governo Allende e que formulou um método de Planejamento, o chamado Planejamento Estratégico Situacional. A anedota era uma estória que se conta do jogador Garrincha, que era um homem muito simples, mas muito hábil jogador. No Campeonato Mundial de Futebol da Suécia, em 1958, quando se preparava para o jogo do Brasil contra Inglaterra, Feola, o técnico da seleção brasileira, fazia preleção aos jogadores e explicava suas táticas. Ele raciocinava como se não houvesse qualquer dúvida de que o adversário adotaria uma estratégia reativa que interessava exclusivamente ao próprio Feola. Estou certo de que convenceu todos com essa combinação de argumentos e casos. À saída, vários participantes ainda repetiam a oportuníssima pergunta de Garrincha ao técnico: “Mas... e os ingleses? Não jogam?”.
Acho que o PT precisava de uma sacudida, a fim de perceber que as reformas econômicas e sociais têm de ser realizadas e concretizadas com mais rapidez, menos burocracia e maior vontade política para resolver as questões e os conflitos sociais. A conjuntura aponta no sentido de que devemos avançar e não recuar em relação às nossas propostas. O clamor das ruas aponta no sentido do avanço e não do recuo. O momento aponta para a direção de efetivar as reformas tão necessárias para o desenvolvimento do povo brasileiro. Aprofundar a reforma agrária. Fazer uma reforma tributária. Articular uma reforma política democrática e progressista. Esses processos são combatidos, por aqueles que controlam os meios de produção. Estes têm muita força e influência no Congresso, no Supremo Tribunal Federal, na Procuradoria Geral da República, nos Ministérios Públicos, nas confederações e federações empresariais rurais e urbanas. Os setores conservadores influenciam inclusive o Palácio do Planalto, que forma um governo de coalizão.
Não se pode confundir o programa de governo com o Projeto de País do governo do PT. As alianças sacramentadas tiveram o propósito de viabilizar a governabilidade, no entanto, este Movimento de Indignação vindo das ruas evidencia que a população espera mais do Governo. As alianças são necessárias para se governar, no entanto, o partido que conquistou o poder não pode rasgar o programa de governo apresentado à população. Por outro lado, o partido não pode esquecer o seu programa e o seu passado. O fato de eu ter sido convidado neste momento para falar com vocês significa que há um despertar para esta realidade.
O PT e o governo da Presidenta Dilma Rousseff não podem vacilar e muito menos perder a disposição quando se trata de distribuir renda. O PT é um partido progressista. Tem em seus quadros militantes e grupos políticos verdadeiramente comprometidos com a mudança e as transformações sociais. Neste momento crítico, não é aconselhável abrir mão das reformas necessárias para compor com as elites econômicas. Isto se constituiria em erro político e estratégico grave.
O PT chegou ao poder. Isto traz benesses, mas traz também obrigações, o cumprimentos de compromissos estabelecidos, o respeito a princípios. O PT soube navegar bem no universo da política institucional. No entanto, a conjuntura mudou. Neste momento, temos que ouvir a voz das ruas. Quem conquista o poder é muitas vezes incomodado. No entanto, este tem também o dever de incomodar aqueles que sempre dominaram a partir do controle dos meios de produção, das terras produtivas e improdutivas e dos meios de comunicação.
O Brasil é hoje um país rico e respeitado em todo o mundo. Temos condições de melhorar significativamente a vida dos brasileiros. As desigualdades injustas envergonham a todo cidadão consciente. Fica evidente que o que a população espera de nós é um comportamento ético e a coerência com a nossa história e os nossos princípios.  Historicamente, sempre tivemos compromisso com o maior grupo social, o mais importante, o melhor, o que trabalha e que quer mudanças e reformas para se livrar da miséria, da pobreza, e da violência consequente.
O Movimento Passe Livre (MPL) que desencadeou as mobilizações atuais tem razão, mas deve dialogar e isto será bem-vindo. O movimento não pode ficar à mercê de grupelhos fascistas e vândalos, como ocorreu nas manifestações. O PT é um partido orgânico, inserido nos principais segmentos e setores da sociedade. O governo do PT e dos seus aliados efetiva uma política econômica e social de distribuição de rendas e de riquezas.
Esta política é combatida diuturna e ferozmente pelo patronato brasileiro e pelos partidos que os representam, especialmente pelo PSDB, DEM e PPS. Alguns partidos de esquerda, estreitos e sectários como o PSOL e PSTU servem aos interesses da direita atacando duramente o PT. Inclusive tentam se infiltrar nestas manifestações, mas foram combatidos pelos demais participantes e tiveram suas bandeiras muitas vezes recolhidas (para não dizer tomadas) pelos demais participantes. A imprensa golpista procura criar um clima como se estas manifestações fossem de oposição ao Governo da Presidente Dilma.
O PT precisa de cumprir totalmente o seu programa de governo e para isso precisa agilizar as reformas previstas. A presidenta Dilma Rousseff tem força política para aprová-las. Se a imprensa e os grupos reacionários querem realmente criticar e fazer oposição sistemática ao governo da Presidente Dilma. É melhor darmos a eles uma motivação concreta e palpável.
Estas manifestações que acontecem agora no Brasil fazem parte de um fenômeno semelhante ocorrida em outros países. Esta é uma das inúmeras manifestações de uma indignação que, nos últimos cinco anos, começaram em um novo espaço social, a internet, para depois chegar às ruas, em massa.
O sociólogo espanhol Manuel Castells é um dos principais acadêmicos a compreender esta mudança. Este é o tema de seu novo livro, chamado Redes de Indignação e Esperança – Movimentos Sociais na Era da Internet, que deve sair no Brasil em setembro, pela editora Zahar. Qualquer manifestação política começa em nossas mentes para depois materializar-se na prática. Segundo Castells: “A forma como pensamos, determina a forma como atuamos. Portanto, o que realmente condiciona o comportamento da sociedade é o que ocorre em nossas mentes”.
Quero lembrar o papel de coerção do Estado para manter o poder. Esta é uma tradição que começa em Maquiavel e que foi formalizada melhor por Max Weber. No entanto, apenas o monopólio da violência torna este mesmo estado débil. Ao mesmo tempo, há outra tradição, que inclui Bertrand Russell, Foucault e também Gramsci, que insiste no papel decisivo da persuasão para a manutenção do poder, pela maneira implícita e explícita de influenciar nossa maneira de pensar. Castells chama a atenção para o fato de que “afinal, manipular as mentes é muito mais eficaz do que torturar os corpos”.
Nossas mentes vivem imersas em um ambiente de comunicação, onde construímos nossa forma de pensar e, portanto, de fazer o que fazemos. Com a chegada das tecnologias digitais, não temos mais como fugir deste ambiente – cada vez mais intenso, veloz e, portanto, mais decisivo para definirmos nossas posições e preferências, tanto quanto indivíduos como sociedade.
O impacto que estas novas tecnologias imprimiram primeiro à sociedade, depois aos meios de comunicação – ou à “arena da comunicação”, como denominou Castels, frisando que não mais podemos separar o público dos grupos que antes controlavam este debate – e, finalmente, aos poderes políticos constituídos. O poder político é construído no espaço da comunicação, este é o espaço em que se joga o poder. É notável o impacto da internet na sociedade moderna. Há quase o mesmo número de linhas de telefones celulares ativas no mundo que de pessoas. No Brasil, já existem mais linhas do que habitantes. A evolução das tecnologias digitais e das tecnologias móveis acelera um processo que está mudando a cara da política. A humanidade está conectada e isso aconteceu num espaço duas décadas, sobretudo nos últimos dez anos.
Há uma crise do jornalismo, agente que funcionaria como mediador entre os poderes e as pessoas, mas que tem perdido o contato com o público, por não saber dialogar com a nova realidade digital e estar obcecado com números de audiência – antes fáceis de ser conseguidos e que agora se dispersam, pois os espectadores e leitores não são mais “vegetativos” como no caso do público da TV.
Hoje se consome muito mais informação que antes, por canais diferentes. O uso da internet se aprofundou, pois novos espaços sociais de interação foram ocupados, cada vez mais personalizados. As redes sociais ganham terreno e até o e-mail já perdeu seu espaço. Segundo Castells: “Há mais de 500 milhões de blogs atualizados diariamente, a maioria na China, e as redes sociais, hoje onipresentes, existem há menos de dez anos”. Além disso, lembramos que a internet se tornou um espaço multicultural.
Este novo cenário resulta na crise total do negócio tradicional da comunicação. Segundo Castells: “Ninguém ainda encontrou a resposta para a questão da perda do monopólio nas transmissões das mensagens. Todos os grandes meios de comunicação em todo o planeta estão em profunda crise empresarial, pois tentam se apropriar de um modelo que não entendem. É um problema mental – e generalizado no mundo todo. A internet é ativa, os outros meios eram passivos”.
O enfraquecimento dos meios tradicionais de comunicação afetou também a política, que hoje busca um rosto para representar o poder, não apenas ideologias ou partidos. Isso acontece porque há uma crise de representação de poder que encontra eco nos novos espaços sociais e faz que a sociedade se pergunte sobre seu papel nestes novos tempos.
O novo cenário é composto não apenas de veículos de comunicação de massa e ambientes digitais que permitem discussões entre as pessoas, mas de uma nova forma de comunicação, que chama de “autocomunicação de massas”. Ele explica o termo: “É de massas porque pode alcançar, potencialmente, milhões e milhões de pessoas. Não ao mesmo tempo, mas uma pequena rede se conecta a muitas redes que se conecta a muitas redes e se chega a todo o mundo”, definiu, “e é ‘auto’ porque há autonomia na emissão das mensagens, na seleção da recepção das mensagens, na criação de redes sociais específicas. Assim, a capacidade de encontrar informação é ilimitada, se você tem critérios de busca – que não são tecnológicos e sim metais ou intelectuais”.
Movimentos como o que propôs a criação coletiva da constituição da Islândia, os Indignados na Espanha, o Occupy Wall Street nos Estados Unidos, a Primavera Árabe e o grupo Anonymous são parte de um mesmo movimento, coletivo e global, que não é político e sim social. Segundo Castells: “São estes movimentos, sociais e não políticos, que realmente mudam a história, pois realizam uma transformação cultural, que está na base de qualquer transformação de poder”.
Estes movimentos começam na internet, mas não são essencialmente digitais. Eles só se tornam visíveis e passam a existir de fato quando tomam as ruas. Estes movimentos acontecem há apenas cinco anos e que eles não têm lideranças, que repudiam a violência e que embora não tenham objetivo definido, encontrem coincidências e semelhanças ao indignar-se. Segundo Castells: “São movimentos emocionais e que se unem pela recuperação de uma dignidade que se perdeu. Às vezes eles começam pequenos e parecem que se mobilizam por pouca coisa, mas que funcionam como apenas uma gota a mais em uma indignação que existe em todos os setores sociais, que as pessoas não aguentam mais”.
Os motivos para estes movimentos podem ser diferentes de uma situação para outra. Isso pode ser a construção de um shopping para turistas na Praça Taksim na Turquia ou no aumento de centavos nas passagens de ônibus como em São Paulo. Segundo Castells: “Centenas de milhões de pessoas já participaram destes movimentos; e são movimentos que podem ter saído das ruas, mas não desapareceram. Eles continuam online. Quando vem a repressão física, eles se retiram das ruas, rediscutem online. Não têm líderes nem programa, mas têm a capacidade de resistir e de renascer a qualquer momento. Isso só acontece porque há a capacidade de autocomunicação de massa que os permitiu existir”.
Para concluir lembro que a palavra ‘dignidade’ aparece em todos os países, em todos estes movimentos, em diferentes países e culturas. Eles não têm uma reivindicação concreta, mas querem o reconhecimento da própria dignidade, pois as pessoas não se veem reconhecidas como pessoas ou cidadãos. Castells reforçou que as semelhanças entre movimentos que partem de causas tão distintas apenas enfatizam seu papel no século 21.
Castells compara o que está acontecendo nos últimos anos com o que aconteceu nos últimos 40 anos no que diz respeito às mulheres, sem se referir a um autor, ideologia ou movimento feminista específico. “Foi um movimento coletivo, em que todas as mulheres do mundo decidiram abandonar o papel de sujeitada para assumirem o papel de sujeitas da história”. Lembro que os avanços da ascensão do papel da mulher na sociedade na última metade de século podem ser comparados aos avanços obtidos em milênios de história anterior. Isso está acontecendo de novo, nesta nova forma de manifestação social – que demanda mudanças culturais mais do que políticas.
Diante deste quadro complexo, torna-se grande e complicado o papel dos dirigentes políticos, principalmente quando comprometidos com a construção de um futuro melhor para a maioria da população até então esquecida e marginalizada. Esta é uma grande da tarefa do Governo dirigido pelo PT e uma missão de sua direção e militância, mas juntos, unidos e determinados, chegaremos lá!
Um grande e fraternal abraço a todos.

domingo, 19 de maio de 2013

Defender os médicos cubanos


publicada em 16 de maio de 2013
Defender os médicos cubanos; denunciar as políticas de saúde no Brasil!
(uma contribuição ao debate)

Por Otávio Dutra*


“Nós mal havíamos começado a pensar na Revolução e ainda no Moncada já estávamos falando dos serviços de saúde, e quando estávamos na Serra Maestra já prestávamos serviços de saúde a toda população com que tínhamos contato, desde os médicos, dentistas e enfermeiros que se incorporavam ao movimento. Isso deve ser uma convicção, um dever elementar dos revolucionários. Mas não somente do ponto de vista moral, também na prática política. Devemos dedicar mais atenção, mais recursos materiais e humanos aos serviços de saúde.”

Discurso pronunciado por Fidel Castro
no encerramento do VI Seminário internacional de Atenção Primária em Saúde,
em 28 de Novembro de 1997.

Eis que surge uma noticia bombástica anunciada pelo governo brasileiro: nos próximos meses está para chegar ao Brasil o primeiro contingente dos mais de 6 mil médicos e médicas de Cuba previstos até 2015. O fato está gerando um intenso debate na sociedade brasileira, permitindo que na polarização criada identifiquemos os atores principais da polêmica, assim como suas intenções de fundo. No bojo deste debate aparece um tema coadjuvante, intrinsecamente ligado a ele, e não menos gerador de polêmicas e divergências na sociedade brasileira, a revalidação dos diplomas médicos expedidos no exterior.

Os atores neste projeto e suas máscaras

De um lado está o governo brasileiro, presidido por Dilma Roussef (PT). Por outro um dos setores mais conservadores da sociedade brasileira, capitaneados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (AMB), entre outros porta-vozes do status quo e do atual modelo hegemônico de saúde no Brasil, em que a saúde não é mais que uma mercadoria. Existe ainda um terceiro ponto de vista, que trataremos de enfatizar neste texto.

O Governo anunciou neste 6 de maio o convênio realizado em parceria com Cuba, que prevê a vinda de milhares de profissionais da medicina desse país para trabalhar fundamentalmente em 3 áreas do Brasil: sertão nordestino e Amazônia brasileira; Vale do Jequitinhonha; periferia das grandes cidades. O convênio faz parte do programa do governo federal “Brasil mais Médicos”, que tem como objetivo “interiorizar” o acesso à saúde no país. Desse programa faz parte também o Programa de Valorização dos Profissionais na Atenção Básica (PROVAB). Em paralelo, o governo federal tem reduzido anualmente os gastos do orçamento nacional destinado à área da saúde (somente em 2012 ocorreu um corte de mais de 5 bilhões de reais), assim como uma progressiva entrega dos serviços e da infra-estrutura pública da saúde à iniciativa privada, através de parcerias público privadas como as Organizações Sociais (OS), as Fundações Estatais de Direito Privado (FEDPs), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Tais medidas vêm - em síntese - no sentido de precarizar o acesso à saúde de grande parte da população, permitir a apropriação privada dos serviços, pesquisas e da infra-estrutura pública para gerar lucro e retirar direitos trabalhistas dos profissionais da saúde. Como se não bastasse, a presidenta Dilma aprovou nesse ano uma série de subsídios estatais para os planos privados de saúde. Tudo isso, quando pensamos em atenção integral em saúde, afunila o já estreito gargalo entre a atenção primária e os demais níveis de atenção em saúde: aos trabalhadores, saúde básica e precária; atenção especializada cada vez mais concentrada nos setores privados.

Com esse conjunto de medidas, o projeto de “interiorização” da saúde no país - com a vinda dos 6 mil médicos de Cuba e o PROVAB - atuaria apenas na ponta do Iceberg, levando profissionais de forma efêmera e precária para o interior, e deixando intacta sua profunda estrutura baseada no controle do complexo médico-industrial e farmacêutico da saúde, em que a existência do setor público serve como alicerce para a acumulação privada de capitais na área, potencializada por uma profunda cisão entre a atenção básica de saúde e os demais níveis de especialização. Enquanto isso, em se tratando da formação de recursos humanos em saúde, dos anos de 2000 a 2013 foram criadas 94 escolas médicas, sendo 26 públicas e 68 particulares, números que apenas confirmam os caminhos do sistema nacional de saúde, em que a formação dos profissionais da saúde é hegemonicamente voltada para o mercado da saúde e para os interesses do complexo médico-industrial e farmacêutico e das grandes empresas da educação superior. E pior, até mesmo nas universidade públicas esse modelo é hegemônico. Com esses elementos, não resta dúvidas de que o projeto de levar médicos para o interior do país não tem qualquer relação com uma política substancial que modifique o modelo de saúde do país e permita uma atenção integral a toda população brasileira.

No entanto, com a divulgação da vinda dos médicos cubanos ao Brasil, os setores mais conservadores da nossa sociedade começam a mostrar seus dentes gananciosos e elitistas. Utilizam como porta vozes o CFM e a AMB, entre outros. Por trás de um falso discurso que preza pela qualidade da atenção à saúde, esses setores corporativistas estão mais interessados em manter o poder e o mercado da categoria médica, fundamentados na medicina privada, defendendo em última instância o controle pelo complexo médico-industrial e farmacêutico do sistema nacional de saúde, inclusive alimentando-se da falta de qualidade da atenção pública para reverter exorbitantes recursos públicos ao privado. Este setores são xenófobos e anti-populares em sua essência, defendem o status quo da sociedade brasileira e, com o medo característico das elites nacionais (em permanente contra-revolução preventiva), direcionam toda sua munição de mentiras e manipulações para atacar a política de contratação dos médicos cubanos, contestando sua capacidade técnico-científica, assim como soltando todo seu veneno e falácias contra a realidade de Cuba e seu sistema socialista.

A saúde e a doença como um processo determinado socialmente

O processo saúde/doença de uma sociedade é determinado socialmente, e assim pelas relações de classe existentes em um modo de produção específico. É necessário compreender a questão da saúde desde uma perspectiva de classe e do antagonismo dos projetos societários das classes em luta, ou ficaríamos como cachorro que corre atrás do próprio rabo, girando sem rumo. Se nosso objetivo é transformar profundamente suas estruturas, torna-se fundamental pensar a saúde a partir da perspectiva societária dos trabalhadores e dos setores oprimidos na sociedade capitalista, aspecto de grande relevância para a construção de uma sociedade isenta da exploração entre seres humanos, necessariamente mais coletivizada e de trabalho essencialmente livre. Apenas nesse sentido a saúde passa, de fato, a ser pensada como a plena satisfação das necessidades materiais e subjetivas de cada indivíduo e da coletividade, emancipatória, e não apenas como ausência de doenças. É imprescindível, para tanto, a construção de um sistema de saúde obrigatoriamente público, 100% estatal, gratuito, que permita o acesso a todos os níveis de atenção à saúde e com alta qualidade para todos os indivíduos, em que o poder popular seja o principal instrumento de planificação, gestão e controle.

Não existe a possibilidade de mudanças estruturais do sistema de saúde sem profundas transformações da estrutura econômica e social de um país. Portanto, é uma luta que se insere no sentido de negar o modo de produção capitalista, um sistema doente e gerador de doenças; a luta por um outro modelo de saúde só pode existir se inserida numa estratégica anti-capitalista. Torna-se necessário, como bandeiras táticas, defender que os recursos do orçamento nacional direcionados ao pagamento da dívida pública com os banqueiros e empresários, da isenção de impostos aos monopólios e da entrega dos nossos recursos naturais e infra-estrutura ao setor privado devem ser redirecionados aos gastos sociais, única forma de garantir um acesso universal, integral e de alta qualidade ao sistema de saúde. Tanto para a formação de recursos humanos, como para a interiorização com qualidade do acesso ao sistema de saúde, são necessários muito mais recursos do orçamento nacional voltados para as áreas de educação e saúde, assim como à previdência, à arte e cultura, ao esporte, à moradia, etc. Nesse sentido, apenas com uma Universidade Popular – que sirva aos anseios e às lutas do povo trabalhador, do ensino à produção de ciência e tecnologia – podemos garantir a formação de profissionais da saúde comprometidos com a elevação da qualidade de vida dos setores populares, assim como sua permanência consciente e voluntária no interior do país, que necessariamente vem acompanhado da ampliação de uma infra-estrutura para uma atenção integral em saúde. Não existem paliativos que sejam suficientes para resolver esses problemas.

Sobre Cuba e seu sistema de saúde

Em Cuba, desde o triunfo popular de 1º de janeiro de 1959, conhecido como Revolução Cubana, o panorama da saúde no país modificou-se completamente. Ao mesmo tempo em que se edificava uma nova forma de organização social - com coletivização dos meios de produção, do trabalho, das riquezas e do poder - se transformava profundamente o padrão de saúde e doença do povo cubano. Passados 54 anos, hoje Cuba é indiscutivelmente uma potência nas áreas da medicina e da biotecnologia. Sobre a primeira basta dizer que tem os melhores indicadores de saúde de nosso continente (mortalidade infantil de 4,6 por cada mil nascidos vivos; 78,9 anos de expectativa média de vida ao nascer, entre outros), segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), assim como uma das maiores proporções médico/habitante do mundo (1 médico para cada 148 habitantes). Cuba hoje é considerada, por um estudo da organização britânica Save the Children, como um dos melhores países para a maternidade do mundo (o melhor da América Latina), pelo seu exemplar programa materno-infantil e pelos direitos garantidas à mãe e à criança. Na área da biotecnologia, mesmo sendo um país de apenas 11 milhões de habitantes, pobre em recursos naturais e bloqueado economicamente pelo maior e mais sanguinário império já existente na humanidade, produz mais de 80% dos medicamentos que consome, exporta medicamentos e vacinas para mais de 50 países, desenvolve pesquisas de ponta nas áreas de câncer, células tronco, úlcera diabética, catarata, vitiligo e HIV/AIDS; para resumir alguns dos avanços técnico-científicos na área da saúde.

E como se não bastasse, Cuba exporta esse modelo de saúde para o mundo, seja através da missões médicas - ininterruptas desde os primeiros anos da Revolução - em territórios devastados por desastres e epidemias na Ásia, África e América Latina, seja pela formação de profissionais de saúde em todos os continentes, principalmente pela Escola Latino Americana de Medicina – ELAM. Hoje são mais de 30 mil médicos cubanos colaborando em missões internacionalistas e um contingente de mais de 20 mil estudantes de 116 países estudando em Cuba, a grande maioria nas áreas da saúde. O programa educacional neste país equilibra um alto nível de preparação técnico-científica (em todos os níveis de atenção em saúde) com a formação de valores humanos e princípios, indispensáveis para uma formação integral dos profissionais de área, fundamentados na saúde como direito universal e não negociável, na atenção integral e na solidariedade entre os povos. Sobre as missões internacionalistas, ainda que existam quase 30 mil médicos cubanos fora do país, não existe um sequer consultório de saúde de família (unidade básica da atenção primária em saúde no país) em que o médico atenda mais de 300 famílias. No Brasil, não seria fato incomum encontrar um só médico atendendo 3 ou 4 mil famílias em uma Unidade Básica de Saúde.

Para se ter uma idéia das diferenças entre o sistema de saúde brasileiro em relação ao cubano basta analisarmos que o número de médicos por habitantes em Cuba é de 1/148 habitantes[1], enquanto que a média do Brasil é de 1/555 distribuídos caoticamente, uma vez que no estado do Rio de Janeiro é de 1/295 e no Maranhão 1/1638[2]. Vale ressaltar que no Brasil, diferentemente de Cuba, a assistência à saúde não é igual para todos e tais proporções entre número de médicos por habitante ficam ainda piores se considerarmos aqueles que não podem pagar por serviços privados de saúde e dependem exclusivamente do SUS.

Neste mar de complexidades, o que pensar sobre a vinda dos mais de 6 mil médicos cubanos ao Brasil?

Em primeiro lugar precisamos destacar que a vinda dos mais de 6 mil cubanos está dentro dos planos do governo de Cuba e não deve alterar de forma significativa a atenção em saúde de seu povo, pelo contrário, já que grande parte dos recursos arrecadados pelo convênio com o Brasil serão direcionados para melhorar a infra-estrutura da área, que mesmo com os 12% do orçamento nacional de Cuba direcionados à saúde, tem dificuldades materiais importantes. Também é importante saber que o perfil dos profissionais que virão ao Brasil é de médicos e médicas com ampla experiência internacional (com no mínimo 2 missões cumpridas anteriormente) e de alto perfil técnico-científico, sendo que todos são especialistas em Medicina Geral Integral (Medicina da Família no Brasil) e a maioria tem outra especialidade médica, além de mestrado em áreas da educação.

Sobre sua atuação no Brasil, o fato é que sua chegada, ainda que trabalhem em condições precárias e inadequadas, modificará significativamente os índices de saúde das regiões onde irão atuar, principalmente em se tratando dos índices de mortalidade ocasionados por doenças infecto-contagiosas, que afetam principalmente populações vulneráveis como as crianças menores de 5 anos, grávidas e idosos. No entanto, a falta de recursos, de infra-estrutura e de uma rede de saúde que permitam a atenção integral à população não vão se modificar um milímetro sequer. É, sem sombra de dúvidas, mais uma das políticas paliativas do governo do PT em sua essência, com forte intencionalidade de conquistar aliados e votos para as eleições presidenciais de 2014.

Contudo, existe uma série de contradições que a vinda dos cubanos irá explicitar. Uma delas é o próprio debate sobre Cuba e seu modelo socialista, que naturalmente acontecerá em todos os espaços onde um cubano ou uma cubana estiverem trabalhando, assim como um intenso combate de idéias em toda a sociedade brasileira. Outro ponto é que, ainda que não resolva problemas estruturais, permitirá levar algum acesso à saúde para uma população esquecida pelos governos do Estado burguês, elemento que não podemos descartar, mesmo quando pensamos que o conceito de saúde é muito mais amplo do que a mera ausência de doenças. Ainda neste ponto, a presença de médicos de Cuba pode desencadear um debate/mobilização sobre a necessidade de ampliar os recursos à saúde, da formação de recursos humanos e de uma infra-estrutura que permita uma atenção integral e de alta qualidade, somente possível com um sistema 100% público e estatal.

Outra questão que deve surgir à tona é o urgente debate sobre a revalidação dos diplomas expedidos no exterior, hoje centrado num discurso corporativista e xenófobo do Conselho Federal de Medicina e seus apêndices conservadores, que antes de considerar a saúde da população preocupa-se com sua reserva de mercado, já que assim trata a saúde, como uma mercadoria mais a comprar e vender. No intuito de dificultar a entrada de “concorrentes”, fecha as portas realizando provas com alto grau de complexidade, e coloca num mesmo barco os indivíduos que vão buscar formação médica no exterior (principalmente em universidade privadas da Bolívia e da Argentina) e o projeto internacionalista de Cuba para a formação de médicos de ciência e consciência para a América Latina e o mundo, parafraseando Fidel, em que os princípios da saúde com um direito universal, público, gratuito, integral e de alta qualidade, convivem com valores como a solidariedade, o humanismo, o altruísmo e o internacionalismo proletário.

Em Cuba, além da qualidade da formação e o reconhecimento internacional de suas instituições de educação médica, existe uma homogeneidade da formação nas suas diversas instituições de ensino superior, sem as grandes disparidades da formação como existem no Brasil. E para além da inegável qualidade técnica da formação médica, há nos médicos formados em Cuba uma preocupação, como em nenhum outro lugar no mundo, com a questão humanística e a emancipação do ser humano, experiência que é levada por eles aos diversos locais do mundo onde estão presentes. Por esses motivos é imprescindível defender um processo de revalidação imediato dos brasileiros graduados nesse país, com complementação curricular à realidade brasileira e inserção no Sistema Único de Saúde (SUS). O mesmo deve ser defendido para os graduados no exterior em instituições de qualidade reconhecida internacionalmente.

No que diz respeito à problemática da revalidação dos demais diplomas expedidos no exterior, passa pelo mesmo debate a respeito da validação dos diplomas nacionais e deve vir em sintonia com um sistema de avaliação nos mesmos moldes dos cursos de medicina dentro do território nacional. No Brasil é fundamental a construção de um método de avaliação da formação médica com vistas a garantir a qualidade da formação e de promover os ajustes e investimentos necessários nas escolas médicas para manter e aprimorar a qualidade da formação. Deve ir, necessariamente, muito além de uma prova direcionada aos graduados em medicina; passa pela avaliação integral e continuada da instituição, do corpo docente e discente, da estrutura universitária, produção científica e da extensão, qualidade dos campos de estágio e da assistência estudantil. Está é a única forma possível de identificar quais as faculdades de medicina que não são mais do que fábricas de diplomas.

Vale lembrar que hoje o exame nacional de revalidação dos diplomas expedidos no exterior, o REVALIDA, é tão fragmentado e insuficiente quanto as propostas de Exame de Ordem para os graduados de medicina no Brasil, que tem sido sucessivamente rechaçados pelos estudantes, professores e trabalhadores de grande parte das faculdades de medicina do país, entre elas muitas de grande renome nacional[3].

As instituições que defendem o exame de ordem do direito e da medicina utilizam-se da dificuldade da prova para regular a entrada de profissionais no mercado de trabalho e tentam respaldar suas tentativas de controle da oferta da força de trabalho a partir do discurso da defesa da qualidade dos serviços. O REVALIDA, assim como o projeto de exame de ordem encabeçado pelo CREMESP, tem como principio norteador não o interesse dos usuários dos serviços de saúde ou a qualidade do atendimento, mas a regulação da entrada de força de trabalho no mercado. Interessante observar que nas lutas reais por maiores financiamentos para a saúde, a luta contra a privatização dos serviços públicos, contra as fundações da área da saúde, em defesa de educação pública de qualidade, mais verbas para a educação pública, entre muitas outras, essas entidades não participam.

E o mais importante, como agir frente a essa política?

A notícia da vinda desses milhares de cubanos e cubanos já desencadeou uma importante disputa no campo das idéias e das ações. É um momento em que as posições das classes sociais antagônicas dentro do sistema capitalista se acirrarão. Sendo assim, a posição dos revolucionários deve ser de crítica na essência das políticas de saúde do governo Dilma, mas de defesa dos médicos cubanos, sem deixar em qualquer momento de divulgar ao conjunto da sociedade as reais intenções de mais essa política paliativa, que ao mesmo tempo que chama médicos e médicas altamente qualificados de Cuba para trabalhar em regiões sem a estrutura adequada, corta recursos da saúde e privatiza os serviços e a infra-estrutura da área, para direcionar os recursos ao pagamento de banqueiros e empresários do Brasil e do mundo. Também será de fundamental importância a construção de um forte e amplo movimento social para amparar os cubanos assim que cheguem em território nacional, já que em muitos casos estará em risco, inclusive, sua segurança pessoal. Outra questão importante é aproveitar o momento de debate para defender a revalidação dos diplomas dos brasileiros e brasileiras graduados na Escola Latino Americana de Medicina em Cuba, com a devida complementação curricular nas universidades públicas do Brasil.

A experiência no Tocantins, estado cujo governo estadual em 2005 celebrou um convênio para a vinda de uma centena de médicos cubanos, mostrou que os setores mais conservadores da sociedade não estão no jogo para brincar. Muitos cubanos receberam violentas ameaças naquele momento e, depois de uma intensa luta jurídica, foram expulsos do Brasil. Esse fato, caso se repita, pode gerar uma importante mobilização social, que desde já deve ser preparada com a intensificação do debate em torno à luta por um sistema de saúde 100% estatal e pública, integral e de alta qualidade, contra qualquer tentativa de privatização/precarização e em defesa dos médicos e médicas de Cuba que trabalharão no Brasil, assim como da rebelde, incansável e persistente Revolução Cubana, exemplo de valores, de idéias e de resistência para os povos da América Latina e do mundo. E aos que insistem em atacar Cuba responderemos munidos de Eduardo Galeano:

“Não foi nada fácil esta proeza nem foi linear o caminho. Quando verdadeiras, as revoluções ocorrem nas condições possíveis. Em um mundo que não admite arcas de Noé, Cuba criou uma sociedade solidária a um passo do centro do sistema inimigo. Em todo esse tempo tenho amado muito esta Revolução. E não somente em seus acertos, o que seria fácil, senão também em seus tropeços e em suas contradições. Também em seus erros me reconheço: este processo tem sido realizado por pessoas simples, gente de carne e osso, e não por heróis de bronze nem máquinas infalíveis. A Revolução Cubana tem-me proporcionado uma incessante fonte de esperança. Aí estão, mais poderosas que qualquer dúvida, essas novas gerações educadas para a participação e não para o egoísmo, para a criação e não para o consumo, para a solidariedade e não para a competição. E aí está, mais forte que qualquer desânimo, a prova viva de que a luta pela dignidade do homem não é uma paixão inútil e a demonstração, palpável e cotidiana de que o mundo novo pode ser construído na realidade e não só na imaginação dos profetas.”

Havana, 11 de maio de 2013.

*Otávio Dutra é estudante de medicina na Escola Latino Americana de Medicina em Cuba, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e membro da Coordenação Nacional da União da Juventude Comunista (UJC).





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[1] Organização Mundial da Saúde, “Cuba: Health Profile”, 2010.

[2] Conselho Federal de Medicina/IBGE, 2010

[3] Para maiores informações sobre o tema consultar o link: http://denemsul2.blogspot.com.br/p/exame-do-cremesp.html

http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=5987:defender-os-medicos-cubanos-denunciar-as-politicas-de-saude-no-brasil&catid=84:solidariedade 

quarta-feira, 13 de março de 2013

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Renúncia do Papa


Renúncia do Papa

Fausto Jaime

Confesso que gostaria muito de conhecer a opinião de Hans Küng a respeito da renúncia do Cardeal Joseph Ratzinger ao papado.  Küng quando professor de teologia na Universidade Eberhard Karls em Tübingen, Alemanha, foi colega de magistério de Joseph Ratzinger, o atual papa. Küng defende o fim da obrigatoriedade do celibato clerical e maior participação laica e feminina na Igreja Católica. Segundo sua interpretação, seria um retorno da teologia baseada na mensagem da Bíblia.
Penso que é hora da Igreja Católica repensar muitos dos seus dogmas. Um deles seria a possibilidade de ordenação de mulheres. Outro dogma em discussão é o da infalibilidade papal. No livro Infallible? An Inquiry ("Infalibilidade? Um inquérito"), Küng iniciou uma reflexão rejeitando o dogma da Infalibilidade Papal. Certamente, esta renúncia colocará este tema na pauta de discussão.
Em seu livro “Um ética global para a política e a economia mundiais”, Küng faz uma crítica radical do mundo atual. Ele mostra a necessidade de uma orientação ética básica com vistas a um mundo mais pacífico, mais humano e mais justo. Toda esta pauta de discussão proposta por Küng é de grande atualidade.
Em abril de 2010, Küng publicou em vários jornais uma carta aberta a todos os bispos católicos. Na carta, ele criticou o comportamento do Papa Bento XVI em questões litúrgicas e no comportamento inter-religioso e também os escândalos de abuso sexual em que membros da Igreja Católica são envolvidos.